Terras indígenas em identificação: emergências étnicas e sobreposições

Página 20 - 04/06/2006
No Acre, quatro terras indígenas encontram-se "em identificação", etapa inicial de seus processos de regularização. No âmbito do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), a Presidência da FUNAI constituiu grupos técnicos (GTs) para iniciar os estudos necessários à identificação e delimitação dessas terras. Atendeu assim a demandas de lideranças e organizações indígenas, por meio das quais, a partir de 1999, os povos Arara e Nawa e duas comunidades, uma Kaxinawá e outra Manchineri, passaram a exigir o reconhecimento de suas identidades étnicas e das terras que tradicionalmente ocupam, conforme previsto na Constituição Federal, no Decreto 1.775/96 e na Portaria 14/96.

As áreas explicitadas, no quadro acima, para três dessas terras constam dos relatórios de identificação entregues pelos GTs à Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID), da Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF), da FUNAI. Nenhum relatório foi objeto de despacho da Presidência do órgão aprovando suas conclusões. Apesar da FUNAI reconhecer a ocupação e os direitos dos indígenas nessas terras, a extensão de cada uma dependerá de processos administrativos e políticos ainda em curso.

Três terras (Arara, Nawa e Kaxinawá) apresentam sobreposições com unidades de conservação, já criadas e previstas, e a primeira também com um projeto de assentamento do INCRA. Conflitos com famílias de extrativistas e agricultores, os posicionamentos das organizações de representação dessas famílias e vários órgãos dos governos federal, estadual e municipais, contrários às propostas feitas pelos GTs da FUNAI, bem como a ausência de iniciativas da CGID/DAF, contribuíram para a paralisação da regularização dessas terras.

A definição da TI Nawa depende de processo que tramita há quatro anos na Justiça Federal. A constituição de novos GTs está em pauta para concluir a identificação das terras Kaxinawá e Manchineri. Uma solução negociada para os graves conflitos na TI Arara do Rio Amônia parece ainda longe de ser alcançada, devido ao crescente acirramento dos ânimos e às iniciativas casuísticas até hoje tomadas pelos representantes de vários órgãos dos governo federal e estadual.

Um breve histórico da situação de cada uma dessas terras indígenas será apresentado a seguir.

TI Kaxinawá do Seringal Curralinho

Em outubro de 2001, a FUNAI formou GT, coordenado pelo antropólogo Jacó Picolli (UFAC), para identificar essa terra. O trabalho de campo foi prematuramente encerrado, em dezembro, devido a ameaças e constrangimentos protagonizados por extrativistas e agricultores dos seringais incluídos na área proposta, e de seu entorno, em oposição à identificação.

Tentativas de diálogo feitas pelo Administrador Regional da FUNAI, junto à Associação de Moradores do Seringal Curralinho e Alto Envira (AMSCAE), ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, ao Conselho Nacional de Seringueiros e à Câmara de Vereadores, poucos frutos renderam e, ao contrário, cristalizaram as divergências. Documentos divulgados pela Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira (OPIRE) e a União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas (UNI) repudiaram a obstrução do trabalho do GT, hipotecaram apoio aos Kaxinawá e exigiram o reconhecimento oficial da terra.

O relatório de identificação, cuja conclusão estava prevista para 2002, ainda não foi encaminhado à CGID/DAF. Dentre as justificativas do antropólogo-coordenador para essa pendência constam a necessidade de concluir o levantamento das benfeitorias de boa fé dos ocupantes não-índios, e de se equacionar os limites entre a terra indígena e uma unidade de conservação de uso sustentável reivindicada pelos "ocupantes não índios", os moradores brancos do entorno e por suas organizações de representação.

O início da regularização dessa terra indígena está paralisada, portanto, há mais de quatro anos, à espera que o coordenador finalize o relatório, cumprindo com compromissos assumidos com os Kaxinawá e em contrato assinado com o PPTAL. Para o avanço dessa regularização, é necessário também que os órgãos indigenista e ambiental trabalhem de forma articulada, uma vez que a retomada da identificação pela FUNAI parece depender do início, pelo IBAMA, dos estudos para a criação da unidade de conservação no entorno da terra indígena. Tentativas de construir consensos entre esses órgãos foram realizadas, em 2002 e 2003, sem resultados posteriores.

Em final de fevereiro de 2006, reunião promovida pelo Administrador da FUNAI em Rio Branco, com a presença da liderança Kaxinawá, resultou em novas evasivas do coordenador do GT quanto à definição de um prazo para a conclusão do relatório. Em outra reunião, na sede da Administração Executiva da FUNAI (AER-RBR), com a coordenadora da CGID/DAF, em março, ficou acertada a formação de um novo GT para concluir a identificação.

TI Arara do Rio Amônia

Em dezembro de 2001, a FUNAI constituiu GT para a identificação dessa terra, coordenado pelo antropólogo Walter Coutinho Júnior. O trabalho de campo do GT foi marcado por tensões com as famílias de extrativistas e agricultores ocupantes da área estudada. O respectivo relatório, propondo uma extensão de 16.900 ha para a terra Arara, foi entregue à CGID/DAF em maio de 2003.

Dentre os fatores que retardaram o início dessa regularização estiveram, primeiro, a não aceitação pelos próprios Arara da proposta apresentada pelo GT; e, segundo, a oposição demonstrada pelos moradores brancos e pelas associações da Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá e do Projeto de Assentamento (PA) Amônia, áreas sobre as quais passaram a incidir partes da terra indígena proposta. Certos moradores da Resex e do PA, que alegaram já terem sido "expulsos do rio Amônia pela FUNAI", quando da demarcação física e da indenização dos ocupantes da TI Kampa do Rio Amônea, em 1992, opuseram-se a um novo deslocamento de suas famílias. Alegaram ainda a inexistência de áreas disponíveis de floresta em Marechal Thaumaturgo, onde pudessem ser reassentados e viver com dignidade.

Outro trabalho de campo, realizado pelo antropólogo Antonio Pereira Neto, em 2004, estabeleceu novo mapa de delimitação da terra indígena, de acordo com a demanda expressa em documentos enviados à DAF pelas lideranças Arara. A nova proposta, com 20.764 ha, é destinada a 278 índios Arara, Amawaka, Santa Rosa, Txama, Conibo, Ashaninka e Kaxinawá, bem como a descendentes de casamentos interétnicos destes com regionais.

Essa extensão incide em 12.092 ha da Resex do Alto Juruá, na margem direita do rio Amônia, em 6.486 ha do PA Amônia, implantado pelo INCRA em 1996, e em 2.186 ha no limite sul do PNSD, criado pelo IBAMA em 1989, ambos na margem esquerda do rio.

Na área proposta, 24 "lotes" do PA Amônia estavam ocupados por famílias indígenas e 35 "lotes" por parceleiros brancos. Na parte da Resex, 13 "colocações" estavam ocupadas por famílias indígenas e 28 por famílias de extrativistas e agricultores. Nessa área do PNSD não existem ocupações permanentes, de índios ou brancos. Em 2002, por ocasião do primeiro GT, levantamentos das benfeitorias de boa-fé foram concluídos em apenas nove das 63 ocupações de não-índios: seis no PA e três na Resex. Os demais ocupantes não permitiram que levantamentos fossem feitos em seus lotes e colocações. Novos levantamentos não chegaram a ser iniciados em 2004, dado o clima de aberta oposição por parte das famílias de ocupantes.

A 11a Reunião da Comissão Paritária Deliberativa do PPTAL, realizada em Rio Branco, em outubro de 2005, recomendou à DAF agilizar a regularização da TI Arara do Rio Amônia.

Segundo o governo estadual, face aos obstáculos ao reconhecimento de sua terra, as lideranças Arara teriam demonstrado, mais recentemente, disposição de readequar os limites propostos no último relatório da FUNAI, excluindo uma pequena parte incidente na Resex do Alto Juruá, onde há quantidade significativa de famílias de não-índios. Essa atitude seria demonstração do desejo dos Arara de construir um consenso que viabilize a delimitação de sua terra, o levantamento das benfeitorias das demais famílias de ocupantes, sua indenização e seu posterior reassentamento.

A solução desta complexa situação não parece, todavia, tão próxima como avalia o governo estadual. Indicação disso foi a retenção de um fiscal do IMAC pelas lideranças Arara, a 5 de maio último, em protesto contra a retirada de madeira por parceleiros do PA, autorizada pelo órgão, em lotes incidentes na proposta de terra indígena. Após o IMAC, o IBAMA, a FUNAI e Polícia Federal se fazerem presentes no Amônia, e a retirada de madeira ter sido por ora suspensa, o administrador da AER-RBR se comprometeu, novamente, a fazer gestões junto à DAF para a retomada dos procedimentos necessários à delimitação da terra indígena.

TI Manchineri do Seringal Guanabara

Em novembro de 2003, a FUNAI constituiu um GT, sob a coordenação do técnico em indigenismo e antropólogo” Raimundo Tavares Leão (AER-RBR), para realizar os estudos de identificação dessa terra. Em junho de 2004, versão preliminar do relatório foi encaminhada à análise da CGID/DAF, propondo uma extensão de 213.254 ha.

Em novembro de 2004, após vistoria técnica realizada na região, o IBAMA, o INCRA e o governo estadual se manifestaram contrários à proposta de limites contida no relatório, alegando que conflitos com os demais moradores poderiam surgir e que a montante do rio Iaco está regularizada a TI Mamoadate, a maior do Acre, destinada aos Manchineri e Jaminawa.

Conforme recomendado no Parecer No 018/CDA/CGID, de abril de 2005, o relatório foi devolvido ao antropólogo-coordenador, para que a delimitação proposta fosse devidamente justificada à luz da legislação indigenista vigente. Em outubro, a 11a Reunião da Comissão Paritária Deliberativa do PPTAL também recomendou à DAF a retomada da identificação dessa terra.

A formação de um novo GT, coordenado por um antropólogo devidamente qualificado, deve ser a medida adotada pela CGID/DAF para viabilizar a conclusão dos trabalhos de identificação dessa terra tradicionalmente ocupada pelos Manchineri, etapa que também incluirá o levantamento das benfeitorias de boa fé dos ocupantes não índios que habitam na área proposta.

TI Nawa (delimitação contestada na Justiça Federal)

As primeiras reivindicações do povo Nawa para a identificação de uma terra indígena, no alto rio Moa, incidente na área norte do PNSD, foram apresentadas por suas lideranças em 1999. No ano seguinte, tornaram a ser feitas durante as discussões para a elaboração do Plano de Manejo do Parque. Isto levou o IBAMA a solicitar à Justiça Federal no Acre uma perícia antropológica para decidir se aquela população, que se dizia Nawa, é indígena. Pelo fato dos Nawa terem sido considerados extintos na historiografia e pela sociedade regional, e pelos alegados prejuízos que a criação da terra indígena causaria aos objetivos originais do PNSD, sua condição de indígenas veio a ser questionada judicialmente pelo IBAMA, em flagrante afronta à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que considera a auto-atribuição como critério fundamental para o reconhecimento de um povo indígena.

Em 2000, o antropólogo Antonio Pereira Neto, então administrador da AER-RBR, realizou trabalho de campo e elaborou relatório, confirmando ser de índios Nawa parte da população residente nos igarapés Novo Recreio, Jesumira, Jordão, Pijuca e Venâncio, dentro do PNSD. Indicou ainda que outras famílias, frutos de casamentos entre Nawa e índios Nukini, Ashaninka, Arara e Jaminawa-Arara, também viviam nesses igarapés. O relatório, todavia, foi considerado insuficiente para o reconhecimento dos Nawa pela Justiça Federal, onde também tramitava ação civil pública, impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União e o IBAMA, pela demora no início da implementação do plano de manejo do PNSD.

Em 2002, a antropóloga Delvair Montagner foi contratada como "perita" para responder a uma série de quesitos proposta pelo Juiz Federal. No laudo pericial, a etnicidade Nawa foi entendida como caso de "etnogênese", ou seja, uma identidade étnica ativamente produzida por uma população que, por ter sido "massacrada" na situação de seringal, optara por assumir outra identidade, para minimizar a discriminação, e que voltou, mais recentemente, a se afirmar como indígena, num contexto em que tornara-se eminente a possibilidade de remoção de todas as famílias residentes no PNSD.

Cerca de um ano após a conclusão do laudo, e na ausência de uma decisão da Justiça, a DAF/FUNAI, em junho de 2003, designou o antropólogo Cloude de Souza Correia para realizar "levantamento prévio" das demandas territoriais dos Nawa e dos Nukini. O relatório, de janeiro de 2004, confirmou que a terra ocupada tradicionalmente pelos Nawa estava integralmente situada no PNSD e que a reivindicação dos Nukini, pela revisão dos limites de sua terra, se sobrepunha a outra parte da área norte do Parque.

Enquanto esse levantamento estava em curso, o Juiz Federal, em agosto de 2003, marcou audiência pública para que a "antropóloga perita" prestasse esclarecimentos conclusivos sobre o quesito "os moradores do igarapé Novo Recreio são Nawa?". Na ata da audiência, realizada a 15 de outubro, "as partes, em acordo unânime, com manifestação do MPF, União, IBAMA e FUNAI, reconheceram a etnia Nawa" e concordaram com a regularização de uma terra indígena incidente no PNSD. A FUNAI assumiu compromissos de iniciar a identificação da TI Nawa, cuja proposta deveria ser posteriormente submetida à homologação do Juiz, e de elaborar, junto com o IBAMA, um plano de manejo para essa terra. A proposta da FUNAI para a elaboração deste plano foi entregue à Justiça em janeiro de 2004, sem qualquer desdobramento.

Em novembro de 2003, GT constituído pela FUNAI, coordenado pelo mesmo antropólogo, iniciou os estudos para a identificação da TI Nawa. Em julho de 2004, uma versão preliminar do relatório foi submetida à CGID/DAF. A versão final, propondo uma extensão de 83.218 ha para a terra indígena, foi entregue em junho de 2005 à CGID.

Em outubro de 2004, antes, portanto, da conclusão do relatório de identificação, o Procurador-Chefe da União no Acre e o Procurador Federal junto ao IBAMA, apresentaram, à Justiça Federal, documento discordando do memorial descritivo da TI Nawa que constava da versão preliminar elaborada pelo GT da FUNAI. Os Procuradores sugeriram, dentre outras possibilidades, a exclusão de cerca de 30.000 ha dessa proposta, alegando que sua aprovação dividiria o PNSD em dois e colocaria obstáculos à implantação do plano de manejo do Parque e às atividades de fiscalização e pesquisa.

Nova audiência foi promovida pelo Juiz Federal em 6 de março de 2006, com presença da FUNAI, INCRA, IBAMA e de lideranças Nawa. A conciliação então realizada esteve centrada na revisão de limites sugerida pelos procuradores federais. Apesar da escassa divulgação dada à realização da audiência e à ata dela resultante, essa conciliação foi aparentemente aceita pelas lideranças Nawa, e endossada pela coordenadora da CGID/DAF, como meio de agilizar o avanço do processo de regularização da terra indígena. Caso os termos desta conciliação venham a ser confirmados, a TI Nawa terá extensão em torno de 53.000 ha.

À guisa de conclusão

Na atual conjuntura, marcada por uma série de sobreposições entre terras indígenas e unidades de conservação, a articulação das ações de vários órgãos dos governos federal e estadual, com participação das organizações de representação dos indígenas e dos extrativistas, continua a ser de fundamental importância para avançar no reconhecimento dos direitos territoriais dessas populações. Sem a promoção desses ambientes participativos de diálogo, e sem a definição de agendas consensuadas de ação, continuarão a ocorrer, ou a se agravar, os conflitos fundiários, interétnicos e socioambientais hoje em curso no Alto Juruá, região onde está situada a maioria das terras indígenas e unidades de conservação já reconhecida no Acre.

PIB:Acre

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