A feira das vidas em extinção

Jornal da Tarde-São Paulo- SP - 23/09/2001
Sexta-feira, 8h da manhã. Na feira-livre de Itanhaém, seis ou sete grupos de índios vendem palmito. Índios e caiçaras também vendem orquídeas e bromélias arrancadas do mato. A reportagem do JT pôde constatar que uma Cattleya guttata de mais de 20 anos e hastes de 1,5 metro de altura, arrancada de sua árvore, era vendida por R$ 5. Foi em homenagem ao nobre e jardineiro inglês
William Cattley - que na aurora do século 19 fez pela primeira vez florescer na Europa uma orquídea do mesmo gênero que ocorre em Pernambuco - que o botânico John Lindley, também inglês, autor da primeira classificação sistemática das orquídeas, batizou o gênero Cattleya. Foram essas orquídeas brasileiras que chamaram a atenção do mundo para a beleza dessa flor, dando origem, há mais de 200 anos, à orquideomania e à onda dos orquidófilos. Criada numa estufa e vendida numa exposição, uma Cattleya guttata desse porte custaria no mínimo R$ 500. Na mesma feira-livre, uma chuva-de-ouro (Oncidium) custava R$ 3. De distribuição mais ampla, as orquídeas desse gênero já haviam sido classificadas antes das Cattleyas, porque alguns exemplares da Oncidium altissima, de longos cachos florais, tinham sido levados das Antilhas para a Inglaterra pelo capitão William Bligh, em 1793, e em 1800 tiveram seu gênero estabelecido pelo botânico sueco Peter Olof Swartz. Descendentes dessas orquídeas florescem até hoje nos Jardins Reais de Kew, na Inglaterra. Compradas por quem vai às feiras-livres de Itanhaém ou das cidades vizinhas, essas orquídeas acabam morrendo na maioria dos casos. Sem saber que são epífitas, isto é, vivem apoiadas no tronco das árvores, alimentando-se do vapor do ar com suas raízes aéreas, a maioria dos compradores as sufoca dentro de vasos de terra e elas acabam apodrecendo e morrem. Além das orquídeas, as bromélias vendidas por índios e caiçaras a preços que variam de R$ 1 e R$ 3 também terão pouco futuro por falta de conhecimento de cultivo. Última moda em jardinagem, as bromélias são plantas típicas do Brasil e de suas florestas e muitas das espécies vendidas nas feiras ou em beiras de estrada já são consideradas extintas (como a bela Vriesea hieroglyfica que tem sido clonada pela Universidade de São Paulo) ou nem foram classificadas. É o caso da bromélia denominada Fireball, comprada por um americano num lote de dezenas de plantas de Itanhaém. Ela tem sido clonada e vendida entre colecionadores nos EUA, apesar de não ter sido ainda classificada. "Foi o branco que deu ao índio o triste papel de extrair da natureza sem repor", diz para a reportagem do JT a índia guarani Catarina, de 50 anos. Ela e o marido, João dos Santos, que vivem numa aldeia em Mongaguá, sustentam os filhos vendendo palmito na feira de Itanhaém. "Nós, índios, viemos de uma economia extrativista milenar", explica Catarina. "Agora o branco precisa nos ensinar e apoiar para que possamos viver e preservar a natureza, mas o que acontece é que estamos abandonados e não temos outro meio de vida. Se os fazendeiros que plantam bananas aqui estão falindo, imagine os índios", diz Catarina, que há seis anos fundou a ONG Associação dos Índios Tupi-Guarani, para defender os nativos. Solo pobre O solo da região em que ficam os índios de Itanhaém é dos mais pobres de São Paulo, exigindo correção, adubação e outros insumos caros, que eles, vivendo em palhoças e casas de pau-a-pique, não têm como bancar. Amigo de Catarina e João dos Santos, o índio Mariano, de 21 anos, que veio do Paraná e foi recebido como irmão pelos outros adolescentes, conta que não ter futuro entre os brancos e não ter como preservar suas tradições é motivo de aflição entre os jovens índios: "Acho que, se os brancos nos dessem condições de fazer uma cooperativa, só fato de a gente ser índio já ia ser uma espécie de grife. O pessoal podia comprar, por exemplo, verduras plantadas por nós e a gente podia recuperar plantas dos nossos antepassados." No ano passado, Mariano fez questão de ir ao Rio Grande do Sul, conhecer as ruínas das Missões, "onde, no século 18, mais de 2 mil guaranis foram mortos por tropas bandeirantes", lembra ele, que não quer esquecer a história de seu povo. A reportagem do JT acompanhou a saída dos índios guaranis da Aldeia Rio Branco, que fica a 30 quilômetros de Itanhaém, 20 deles em estrada de terra. Lá vivem cerca de 600 índios, espalhados em casebres em dois hectares de terra que faziam parte de uma antiga fazenda, no fim de uma estrada vicinal, entre decadentes plantações de banana. Mais de uma dezena de aldeias se espalham numa ampla região, que vai até Parelheiros, na zona sul da capital. Os casebres da Aldeia Rio Branco, muitos deles de paredes de barro, abrigo ideal para o inseto que transmite a doença de Chagas, são mais pobres que os das favelas de São Paulo. Para chegar a Itanhaém, os índios caminham a noite toda a pé ou vão de bicicleta. O marido de Catarina já foi casado "com uma branca do Guarujá", segundo conta, com quem teve quatro filhos. "Mas depois eu casei com a Catarina na Funai." Catarina conta que o apoio da Funai é pouco, mas alguma coisa já foi feita, como a escola na Aldeia Rio Branco, onde os índios aprendem português e guarani e os projetos de plantação comercial de palmito pelos próprios índios. Centro de Tradições "Se tiverem andamento, esses projetos podem ser uma saída para nossas aldeias." Ela conta que outro projeto dos índios é criar um Centro de Tradições Indígenas em Itanhaém, "para que conheçam nossa importância como gente por meio do estudo da história e apreciem nossos trabalhos de artesanato, que mostram como é a nossa sensibilidade". Na Aldeia Rio Branco, enquanto o índio Luiz, de 10 anos, pinta o corpo para mostrar para a reportagem, alguns índios carregados de palmito que trouxeram das matas pegam uma perua que os leva a Itanhaém. A perua cobra R$ 150 para transportar os índios da aldeia para a feira-livre, carregados de troncos de palmito.Quer dizer: eles já vão endividados para a feira. Os palmitos vêm semidescascados, mas ainda mostrando as capas cor de coral que protegem o comestível coração da palmeira. Cada palmito de 1 metro é vendido por R$ 3 e, descascado e cozido, fornece o conteúdo de dois potes de vidro desses à venda nos supermercados. Catarina é a única que já vende o próprio coração do palmito, o núcleo central branco e macio, embalado em saquinhos. "O senhor não vai ter trabalho de descascar, mas precisa cozinhar e pôr em conserva rápido porque com o tempo ele fica encardido em contato com o ar." Cada saquinho também fornece o equivalente a dois potes de supermercado. Por que não vendem os palmitos já cozidos e em potes de conservaBotulismo", explica Catarina. "É muito perigoso porque o caldo do palmito estraga logo e cria micróbios invisíveis que produzem veneno sem gosto", ela conta, revelando conhecer o risco de intoxicação apresentado pelas das conservas. "É melhor comprar assim fresco ou de boa marca", explica a índia. Ela conta que, quando fresco, o caldo do palmito cozido é altamente medicinal e antiácido. Ele pode ser tomado para aliviar crises de úlcera e acidez. O problema é que esse caldo alcalino e antiácido é o meio de cultura ideal para a bactéria do botulismo, que pode matar uma pessoa. Crime ambiental inafiançável, a extração de orquídeas silvestres e principalmente do palmito, produzido pela palmeira juçara, em extinção na Mata Atlântica, tem ocasionado prisões de brancos que também teriam adotado a profissão dos índios (na verdade é o contrário: os brancos é que os ensinaram a fazer coleta comercial, pois a deles era de subsistência). Só que os índios são protegidos pela própria Constituição, que lhes confere o estatuto de inimputáveis, tornando juridicamente polêmica sua punição. Bem próximo de Itanhaém, no Vale do Ribeira, já ocorreram várias mortes de guardas florestais e palmiteiros, numa verdadeira guerra do palmito. O administrador da Funai de Bauru, no extremo oeste do Estado, a que está subordinada a área de Itanhaém, Rômulo Siqueira de Sá, conta que o problema da coleta ilegal nas matas não é uma responsabilidade da Funai, embora esteja começando a aplicar nessas áreas a única fórmula eficaz de evitar isso: o manejo sustentável da natureza. "Graças à execução de um projeto da Funai de manejo sustentável, os índios de Boracéia, por exemplo, já cultivam o palmito pupunha, que tem crescimento mais rápido que o juçara, e já o estão vendendo na beira das estradas. Quer dizer, nesse caso eles estão produzindo e vendendo sem afetar a natureza." Ele conta que o trabalho é lento e complexo, pois tem de ser especifico para cada comunidade, mas acrescenta que felizmente a Funai está tendo excelentes parecerias com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e com a Unesp, para disseminar o manejo sustentável entre a população indígena. A situação de abandono dos guraranis é tão gritante, que, no Paraná, na estrada que liga Curitiba a Foz do Iguaçu, existem placas sinalizando a presença de índios para alertar os motoristas, pois guaranis embriagados são freqüentemente atropelados nas pistas.
PIB:Sul

Áreas Protegidas Relacionadas

  • TI Rio Branco (do Itanhaém)
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