Terra Indígena da Guarita vive dias de terror diante da incerteza e falta de segurança

Brasil de Fato - https://www.brasildefators.com.br - 10/03/2022
Situação ficou mais grave com tentativa de homicídio de uma idosa e seu marido à golpes de arma branca nesta semana
Pedro Neves

Brasil de Fato | Porto Alegre | 10 de Março de 2022 às 19:26

Os habitantes da Terra Indígena (TI) Guarita vivem dias de tensão e insegurança nos últimos meses. Porém, na última semana, esse clima se transformou em cenas de terror, com tentativa de homicídio de uma idosa e seu marido à golpes de arma branca. A Guarita é a maior terra indígena do RS, com uma população de aproximadamente 6 mil habitantes, descendentes da etnia Kaingang.

O clima de conflito se deve à disputa pela eleição de um novo cacique para a TI. O mandatário eleito em 2018 (Carlinhos Alfaiate) não reconhece o processo eleitoral convocado pela comunidade em 2021 e que teve como vencedora uma chapa opositora.

Conforme apurou o repórter Marco Weissheimer, o pleito eleitoral realizado em dezembro de 2021 contou com a participação de 60,27% do eleitorado, que votaram em três chapas concorrentes. A vencedora, encabeçada por Valdones Joaquim, obteve cerca de 1700 votos, entre os 2394 indígenas que compareceram às urnas.

Carlinhos Alfaiate não reconhece a legitimidade do processo eleitoral convocado pela comunidade, tampouco a comissão eleitoral que organizou o pleito, baseado no argumento de que o mandato para o qual foi eleito é de 5 anos, se estendendo, portanto, até o fim de 2022.

Disputa pelo cacicado deixa um rastro de violência

Conforme explica a defensora pública de Tenente Portela, Kedi Leticia Bagetti, outro ponto de conflito é que, após ter sido eleito e empossado como novo cacique, Valdones Joaquim, que já foi vereador em Tenente Portela, foi preso por desrespeitar as regras do regime de liberdade domiciliar a qual estava condicionado por responder processo criminal. Diante disso, a comissão eleitoral oficializou o nome do vice-cacique eleito Joel Ribeiro, que é vereador em Redentora.

A partir desse momento, contextualiza a defensora, começaram a aumentar os conflitos, no final de 2021. Em janeiro, as disputas seguiram com a permanência da postura de Carlinhos Alfaiate em não aceitar a legitimidade da eleição, resultando daí numa divisão na comunidade, entre os apoiadores de Joel e do cacique mais antigo.

Deste conflito resultaram diversas agressões físicas e brigas, em um cenário onde há diversos habitantes armados. "Enquanto um lado deseja assumir o poder, o outro não quer largar", explica Kedi.

Nesta terça-feira (8), ocorreu um novo episódio, dessa vez muito mais grave, com tentativa de homicídio contra uma indígena idosa. Segundo a defensora, as autoridades que deveriam atuar na segurança dessas pessoas não estão cumprindo seu dever.

Tentativa de homicídio à golpes de facão

A reportagem do Brasil de Fato RS recebeu a denúncia da tentativa de homicídio através de vídeos, áudios e fotos no Whatsapp. Em um vídeo, uma moradora da Guarita (que não iremos identificar por questões de segurança) grava de dentro de um carro, com uma mulher aparentemente desmaiada deitada em seu colo.

"Nesse momento, estamos tirando a Rosa* da TI. [Ela] foi gravemente ferida com um facão, pela gente do Carlinhos. Essa gente que quer comandar a Guarita. Queremos justiça, enquanto não matarem alguém, não vão parar", fala a denunciante, em choro, no vídeo. Rosa é um nome fictício.

Ainda no mesmo vídeo, é dito que a mulher em questão é uma idosa de mais de 60 anos e que é vizinha de Alfaiate. No depoimento através do Whatsapp, a denunciante afirma que o marido da mulher que sofreu o atentado também havia sido ferido e está desaparecido.

O vídeo contém imagens muito fortes e não serão reproduzidas aqui, mas mostram a senhora sendo levada no carro, desacordada, coberta de sangue, com graves ferimentos em uma das mãos, braço e cabeça.

Tentamos contato com Carlinhos Alfaiate, para que se pronuncie sobre a denúncia e dê sua versão dos fatos, porém, não obtivemos sucesso no contato telefônico, até o fechamento da reportagem, também não conseguimos mais informações sobre o atual estado da idosa e de seu marido. Se houver retorno, será incluído na matéria.

Lideranças e gestão paralela

Conforme explica a defensora pública, a comunidade indígena da Guarita é dividida por setores, cada um destes tendo as suas lideranças, chamados de "capitão", ou "major", dependendo do caso. Essas lideranças são escolhidas pelo cacique.

Dessa forma, Joel, o cacique recentemente eleito, escolheu suas lideranças e estava tentando colocar essas pessoas nos seus postos em cada um dos setores da TI, ao mesmo tempo em que começou a organizar algumas situações da comunidade, como a falta de profissionais de saúde e de professores, por exemplo.

Nesse momento, informa a defensora, que conflitos maiores tomaram conta da comunidade, em janeiro, a ponto de interromper o processo seletivo de profissionais da saúde que atuariam na comunidade. Em outro vídeo enviado pela defensora, é possível presenciar uma briga entre muitas pessoas.

O vídeo mostra uma tentativa de apresentação de Joel, em uma igreja dentro da TI. Logo no início de sua fala, é possível observar que agressões começam a ocorrer. Quando a mulher que grava o vídeo se aproxima para registrar o ocorrido, alguém tenta lhe tomar o celular. É possível ouvir a partir daí a mulher tentando se esquivar e pedindo que a pessoa não pegue uma faca.

Diante deste impasse, a defensora pública afirma que no momento é necessário falar em um duplo cacicado, com ambos os caciques apresentando documentos sobre quem seria o líder legítimo da TI.

"Nós temos o Carlinhos (cacique antigo) afirmando que os mandatos são de 5 anos e, por essa razão, deveria ficar até dezembro de 2022. Nós temos [também] o Joel com o resultado da eleição e com o documento do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), reconhecendo a eleição como legítima", informa.

Órgãos públicos se manifestam

Kedi relata ainda que, depois do conflito na igreja, a Defensoria Pública de Tenente Portela promoveu reuniões conjuntas entre o Ministério Publico, representantes da comunidade, do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), CEPI e Conselho Estadual de Direitos Humanos.

Entre outras deliberações, a partir desses espaços, sentiu-se a necessidade da criação de uma câmara especializada para tratar dessas demandas indígenas e desse conflito. "Embora essas reuniões tenham algum avanço, não foram suficientes para cessar o conflito e estabelecer quem seria o cacique", relata.

Diante desse problema, a defensora afirma que o MPF acabou por "lavar as mãos".

"Por um lado, [o MPF] está correto ao afirmar que a as eleições [ocorridas] é uma questão interna [dos indígenas]. Mas, ao mesmo tempo, não dá a segurança necessária para o cacique eleito assumir o cacicado e exercer suas funções."

MPF de Passo Fundo se manifestou ainda em fevereiro

Em manifestação enviada à reportagem do site Clic Portela no final de fevereiro, o MPF de Passo Fundo afirma que "reconhece o direito à autonomia e auto-organização dos povos indígenas", e que este posicionamento não dá legitimidade à nenhum dos grupos que brigam pelo poder. Ao mesmo tempo, relata que pediu por um reforço na segurança dentro da Guarita.

O mesmo comunicado relata ainda reunião ocorrida em janeiro, no Batalhão da Brigada Militar de Três Passos (RS), que contou com a participação da FUNAI, Brigada Militar, Polícia Federal e Polícia Civil. Nesse encontro, que contou com a presença de representantes dos dois grupos em disputa na TI, não se chegou a um consenso, porém, concordaram que a FUNAI buscasse o auxílio do Conselho Estadual dos Povos Indígenas para a conciliação.

A nota relata ainda que o CEPI deliberou que as eleições ocorridas em dezembro de 2021 tinham validade e que, por isso, deveria ser respeitada a vontade da população indígena que foi às urnas. Diante da inconformidade do grupo de Carlinhos Alfaiate e com o acirramento dos conflitos, o MPF decidiu requisitar à Brigada Militar que efetuasse o policiamento ostensivo na área.

Diante dos fatos relatos nesta reportagem, as diligências ainda não surtiram efeito com o objetivo de impedir novas agressões. Além disso, de acordo com as informações da Defensoria Pública local, o conflito já afeta o funcionamento normal das instituições públicas na TI. Além do processo seletivo para o posto de saúde que está parado, já acontecem outras interrupções de serviços básicos.

"Tivemos relatos de falta de cestas básicas, que são enviadas pela FUNAI, pois, simplesmente, não foram entregues para o cacique eleito. Temos várias problemas vão além da violência, como a falta de serviços básicos dentro da comunidade."

Manifestação pede o fim das agressões

Na tarde desta quarta-feira (9), um grupo de habitantes da Guarita realizou um protesto pacífico, pedindo o fim das agressões e o respeito ao processo eleitoral realizado em dezembro. Em vídeo enviado à reportagem, uma liderança faz uma fala para a câmera enquanto um grupo de mulheres carrega uma faixa escrito "Não matem a democracia!!!".

Afirma também que ninguém ali havia sido obrigado a estar na manifestação e que os indígenas ali presentes estavam lutando pela democracia. Também diz que Carlinhos não é mais o cacique e que a comunidade pede socorro, por estarem sofrendo momentos de muita pressão e violência.

Relata ainda que o posicionamento do comandante Munari "trouxe caos para a comunidade". Em entrevista à uma rádio local, no mês de fevereiro, Major Diego Munari, da Brigada Militar, declarou que o pedido do MPF de Passo Fundo por policiamento ostensivo na região era um reconhecimento da ilegitimidade do processo eleitoral. A posição equivocada do comandante foi desmentida pela nota citada logo acima.

No vídeo da manifestação, a liderança fala também que muitas das pessoas da comunidade não se sentem seguras. Fala de ameaças com foguetes e tiros em suas casas à noite, além de agressões físicas. Por fim, questiona "O que é tudo isso Carlinhos? Tu já foi muito melhor que isto".

Edição: Katia Marko

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