Futura presidente da Funai afirma que alertou Mourão sobre problemas no território Yanomami

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/01 - 25/01/2023
Futura presidente da Funai afirma que alertou Mourão sobre problemas no território Yanomami
Em entrevista ao GLOBO, a deputada federal Joenia Wapichana, que assumirá o órgão, disse que crise humanitária era 'tragédia anunciada'

Por Paula Ferreira - Brasília
25/01/2023 15h42

Primeira mulher indígena a assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a deputada Joenia Wapichana afirma que a crise humanitária que atinge os ianomâmis era uma "tragédia anunciada". Em entrevista ao GLOBO, ela conta ter se reunido ainda em 2019 com o então vice-presidente Hamilton Mourão para relatar a situação no Território Yanomami, mas nada foi feito. Procurado por meio de sua assessoria, Mourão não comentou as declarações.
Joenia afirma que a possível omissão e prevaricação do governo de Jair Bolsonaro deve ser apurada pelas autoridades. Segundo a parlamentar, na Funai, houve um processo de "desorientação" do trabalho dos servidores, que receberam ordens para "fechar as portas para indígenas". À frente do órgão, Joenia quer retomar concursos para solucionar a falta de servidores e revisar processos administrativos abertos pelo antigo governo contra funcionários que para ela foram "perseguidos".

Ela ainda será oficialmente nomeada para o cargo, mas antes mesmo de tomar posse no órgão tem ajudado a organizar as ações para resolver a crise. Segundo ela, além do atendimento necessário aos ianomâmis, é preciso iniciar um processo de "desintrusão" do garimpo ilegal das áreas indígenas, o que precisará contar com a ajuda de outros ministérios, além da Polícia Federal e Exército.

Como classifica a situação que encontrou no Território Yanomami?
É uma crise de urgência humanitária, eu creio que toda prioridade tem que ser dada para tentar levar não somente a saúde urgente, mas também para evitar mais mortes. Isso é uma ação que tem que ser pensada nessa primeira fase: evitar mais mortes de crianças, de adultos, porque estão morrendo de fome. A fase é de agir rápido. Segundo, é preciso apurar os motivos para que esse quadro se apresente. É preciso pensar rapidamente em ações para conter o garimpo ilegal, que está causando uma série de danos, tanto ambientais como sociais. O garimpo ilegal agrava a fome, está muito relacionado à malária, à contaminação da água por mercúrio, que a gente tem denunciado, principalmente nesses últimos anos. E a violência, que não está deixando a comunidade tranquila para fazer suas roças, para andar livremente, que espanta a caça, e acarreta uma interferência externa ao modo de vida do povo ianomâmi. Há o conflito interno que não deixa as equipes fazerem o seu trabalho, é uma situação de insegurança que existe hoje. Tudo isso tem que ser pensado transversalmente. A urgência é essa da saúde, mas não deixamos de pensar na questão do garimpo ilegal.

O presidente afirmou que vai combater o garimpo ilegal. Qual o impacto dessa declaração?
O Lula foi lá e deixou uma mensagem clara não só para o estado de Roraima, mas para todos que têm um interesse escuso sobre garimpo em terras indígenas, que possam repensar e sair de imediato. Isso foi um alerta. Ele deu essa declaração no sentido de dizer "basta dessa ilegalidade que ocorreu no outro governo". Nós estamos vivendo uma nova fase no Brasil de recuperar, de dar respostas, porque é inadmissível que isso venha acontecendo. Não foi por falta de denúncias. O presidente Bolsonaro foi denunciado no tribunal internacional (de Haia), foi denunciado em várias comissões (na Câmara), inclusive eu presidi uma comissão externa sobre o povo ianomâmi e relatei essa situação da desnutrição, da saúde, e pedi providências imediatas tanto do Poder Executivo, como do judiciário. Já existe decisão judicial também para tirar garimpeiros, levar saúde, fazer o atendimento aos vulneráveis. O que faltou era justamente ação. Podem responder inclusive pela omissão.

A senhora mencionou que houve alertas. Era uma tragédia anunciada?
Com certeza era uma tragédia anunciada. A irresponsabilidade do governo anterior foi bastante clara. Eu tive uma reunião com o vice-presidente (Hamilton) Mourão, se não me engano ainda em 2019. Nós colocamos toda a vulnerabilidade da terra indígena. Como ele era o representante do conselho da Amazônia, e sendo uma terra indígena parte da Amazônia, ele deveria ter dado uma atenção. Ele teve a atenção de receber a gente, mas não deu resposta depois. A partir do momento em que você está numa posição que deve responder sobre uma denúncia e você prevarica ou se omite, seja indígena ou não indígena, teria que estar respondendo por isso. Ele (Mourão) é uma autoridade pública e fez um compromisso de respeitar a Constituição Brasileira. Para isso tem o dever do Estado brasileiro de dar uma resposta a todas as denúncias que ele ouve, então omitiu. E essa omissão ela deve ser apurada e se houve prevaricação também.

Esse quadro poderia ter sido evitado?
As crianças estão morrendo de malária, em consequência de algo que poderia muito bem ser tratado no início se tivessem condições de atendimento adequadas, medicamentos. Verminose também se combate com medicamentos. Malária, verminoses, pneumonia são questões graves que estão matando as crianças, mas que se tivessem o atendimento adequado a gente teria salvado mais vidas. O Ministério da Saúde relata 570 mortes, mas eu creio que existe um número muito maior. Existe subnotificação.

O que a Funai pretende fazer para retirar garimpeiros ilegais do Território Yanomami? Como vai fortalecer a fiscalização na região?
Esse plano tem que ser discutido interministerialmente. Existe vários planos discutidos a nível de ações judiciais que devem ser considerados. A Funai vai ter que atualizar seus dados, porque a Funai antes era praticamente omissa e não tinha qualquer atenção relacionada a essa questão da desintrusão. Eu ainda não assumi, mas desde já estamos fazendo um levantamento sobre a situação da Funai, que está numa situação precária em termos de orçamento. Vamos precisar contar com o orçamento de outros ministérios, com o apoio do governo, que já sinalizou que vai apoiar. Vamos precisar contar com o Exército, com a Polícia Federal, vamos ter que sentar para atualizar esse plano. É possível fazer a desintrusão, já vimos isso acontecer em 1991, quando tinha mais de 40 mil garimpeiros ilegais, um número bem maior.

Há defasagem de servidores da Funai nessas áreas?
Está lastimável. Os servidores foram perseguidos, muitos respondem processos administrativos, inclusive o Bruno Pereira, que foi assassinado no Vale do Javari e que teve que se ausentar da Funai para cumprir uma obrigação que era da instituição. Teve muito retrocesso, ao invés de a Funai valorizar seus servidores, a autoestima deles estava muito baixa. Na primeira reunião que fiz com os servidores, falei que a gente precisa retomar o plano de carreira, trabalhar na melhoria do quadro da Funai, fazer o concurso público que estava previsto. Alguns servidores foram para outros órgão, porque estavam desestimulados, é preciso trazê-los de volta. Os servidores receberam muitas orientações para fechar a porta da Funai para indígenas. Aqui nessa sala da presidência da Funai fazia mais de quatro anos que não entrava indígena. Temos situações urgentes. Além da crise humanitária ianomâmi, temos área de conflito na Bahia, temos a situação do Vale do Javari, garimpo na área Munduruku, no Pará, ali no Xingú, nos Kaiapós ameaças de invasões. Essas áreas representam 14% do estado brasileiro e precisam de pessoas atuando com responsabilidade.

A senhora pretende rever os processos administrativos abertos contra servidores da Funai?
Com certeza. A gente está num processo de nomeações ainda essa semana, ontem que saíram as exonerações de alguns cargos comissionados e que vão passar por uma nova designação. Quando as pessoas assumirem seus postos vamos dar andamento a essas revisões para ver o que aconteceu no passado. Já recebi várias queixas sobre perseguições, uma delas foi sobre Bruno Pereira. Eu quero assumir dando essa extinção para o caso do Bruno. Eu não entendo, a pessoa já se foi e o processo sequer foi extinto. São alguns dos absurdos que vemos.

A senhora falou recentemente em "renovaço" na Funai. Na terça-feira saíram mais de 40 exonerações. Ainda haverá outra leva de demissões ?
(Teremos) Primeira, segunda e terceira leva (de exonerações). Houve desorientação do papel da Funai para flexibilizar regras, para autorizar invasões, para não atender indígenas. É bastante grave isso. Além de revisar algumas instruções normativas, vamos ter que revogar outras. Não só instruções normativas da Funai, mas alguns pareceres da AGU (Advocacia Geral da União) que vão de encontro aos direitos constitucionais indígenas, alguns decretos. Além do "renovaço" é o "revogaço".

Qual a medida mais urgente para revogação?
Estamos verificando a instrução normativa 09 (que permitiu o registro de propriedades privadas em áreas indígenas não homologadas) para revogá-la. Tem que ter um parecer da AGU a respeito.
Há terras prontas para demarcação, quando isso será feito?
Já fizemos uma lista de terras indígenas ainda no grupo de trabalho da transição. Na viagem que fiz com presidente Lula (para Roraima) ele já solicitou que eu envie para Presidência, que ele fará um balanço dos primeiros dias. Possivelmente vão sair essas (demarcações) de terras indígenas. Eu pedi para fazê-lo quando eu tomar posse para mostrar o retorno da Funai.


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PIB:Roraima/Mata

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