Narcotráfico, garimpo, pesca e caça ilegal e contrabando de madeira se unem na Amazônia

O Globo, Brasil, p. 13 - 28/06/2022
Narcotráfico, garimpo, pesca e caça ilegal e contrabando de madeira se unem na Amazônia
Taxa média de violência letal na Amazônia Legal, que se estende por nove estados, é 40,8% superior à verificada nos demais municípios brasileiros

Eduardo Gonçalves
Paula Ferreira

28/06/2022

Moradores da região Norte da tríplice fronteira - Brasil, Peru e Colômbia - chamam o local da Amazônia onde narcotráfico, garimpo, contrabando de madeira e pesca e caça ilegal se conectam de ''o quintal do crime organizado". A expressão se justifica: pesquisas feitas por estudiosos e operações policiais mostram como essa integração de diferentes grupos armados e a sobreposição de delitos colocam em risco povos indígenas, comunidades ribeirinhas e a floresta mais rica em biodiversidade do mundo.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que constam em relatório divulgado em fevereiro deste ano, dão a dimensão do problema. A taxa média de violência letal na Amazônia Legal, que se estende por nove estados, é 40,8% superior à verificada nos demais municípios brasileiros. Entre janeiro e novembro do ano passado, foram 21 assassinatos em conflitos na região, um aumento de 23% em relação a 2020.

Foi em um dos rios da região, o Itaquaí, que foram assassinados o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. Bruno vinha levantando indícios sobre como o esquema de pesca e caça ilegal nas terras indígenas servia para lavar o dinheiro do narcotráfico - um dos principais suspeitos pelo duplo homicídio é um pescador ilegal. A Polícia Federal investiga se ele tem conexões com um megatraficante peruano, como revelado pelo GLOBO há duas semanas. Por conta das denúncias que fez às autoridades, Bruno passou a ser ameaçado, assim como indígenas que trabalhavam com ele.

Tanto do lado brasileiro como do peruano, não faltam demonstrações de violência das quadrilhas. Em janeiro deste ano, um posto da polícia peruana em Porto Amélia, na fronteira com Atalaia do Norte (AM), foi atacado por homens armados e reduzido a cinzas - só sobraram os destroços. Em 2018 e 2019, a alguns quilômetros dali, uma base da Funai destinada à proteção de indígenas isolados no Vale do Javari foi alvo de tiros.

De uns anos para cá, pichações nas paredes de vilarejos com os nomes dos grupos criminosos ficaram frequentes. Nas comunidades ribeirinhas que margeiam os rios Javari, Japurá e Negro, que desembocam no Amazonas, a realidade do crime pode ser vista em manifestações nas redes sociais, mostrando "quem manda no pedaço".

Na tríplice fronteira amazônica, quem domina é uma facção recém-criada que, em 2020, entrou em uma lista com outras dezenove organizações criminosas identificadas na Região Norte. As informações constam de um estudo feito pelo pesquisador Aiala Couto, professor de geografia da Universidade do Estado do Pará e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Nascido de uma dissidência de uma facção de Manaus, a quadrilha foi formada sob o pretexto de unir os atravessadores, ou "mulas", que transportavam a cocaína e o skunk do Peru e Colômbia em uma espécie de sindicato. O plano era uniformizar o preço da travessia e evitar os achaques dos traficantes de facções maiores do Sudeste, que negociam com eles. Num exemplo de integração extraterritorial - que não acontece entre as forças de segurança -, a facção é formada por criminosos brasileiros, peruanos e colombianos. O seu slogan traz a bandeira dos três países e os seus hinos são entoados em português e espanhol.

- Eles estão numa área estratégica, que liga o Javari ao Solimões, e é repleta de comunidades indígenas e ribeirinhas que servem como entrepostos - diz Couto, que vê o narcotráfico hoje como um elemento de integração entre as atividades de exploração ilegal praticadas na floresta. - Os traficantes detectaram a importância de se conectar a esses grupos. Viram que a rota da madeira, ouro e pesca é a mesma da droga. E usam as mesmas embarcações. Por isso, começamos a rastrear a presença de células de facções do Rio e São Paulo, que trouxeram o expertise criminoso à Amazônia, em TIs.

Para especialistas, a expansão do narcotráfico e a integração com outras atividades ilegais na Amazônia colocam em perigo a vida da população local e a preservação da floresta.

- A Amazônia é palco de uma verdadeira guerra de versões. Enquanto essa guerra vai sendo travada ideologicamente, as pessoas estão morrendo, a floresta está sendo derrubada e a gente está garantindo tudo, menos soberania. Quem controla a Amazônia são os grupos armados - diz o diretor-presidente do Fórum de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.

Somado à alta do preço dos produtos ilícitos no mercado internacional - droga, ouro, madeira e carne de animais selvagens protegidos -, a região carece de estrutura policial para fiscalizar e investigar.

-Já recebi relatos de policiais que não saíam para atender ocorrências por falta de colete à prova de bala. E de delegados que tiveram que devolver um minério apreendido porque não havia laboratório para periciar - diz o professor de Sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora Vicente Rizzio, que fez trabalhos de campo na Amazônia nos últimos anos.

Com seus milhares de quilômetros de afluentes que se transformam em igarapés e igapós, a rota é considerada quase "infiscalizável" pelas autoridades, que preferem montar blitz em regiões mais próximas aos centros urbanos, como Coari (AM) e Tefé (AM).

Diante do vale-tudo na região, agentes da polícia relatam ações frustradas de fiscalização por casos de roubo entre criminosos. Como ocorreu quando garimpeiros e traficantes foram assaltados antes por "piratas" armados de fuzis e a bordo de lanchas potentes.

Nessa região, um delegado da Polícia Civil, Thyago Garcez, de 30 anos, desapareceu no fim de 2016. Ele foi visto pela última vez em uma troca de tiros com traficantes e piratas em uma comunidade ribeirinha às margens do Rio Solimões. A investigação sobre o possível assassinato de Garcez foi arquivada três anos depois e o caso nunca foi esclarecido.

O padre Joaquim Barbosa, da Pastoral Carcerária do Amazonas, afirma que tem ouvido cada vez mais relatos de ribeirinhos que se queixam de tiros disparados a esmo por criminosos na região de Tefé, no Médio Solimões.

- Antes, pegava mal falar de droga nas vilas. Agora, estamos fazendo projetos de música e esporte em comunidades indígenas para tentar manter os jovens longe do tráfico, que já é uma realidade nesses locais - afirmou ele.

A rotina da população que vive há anos à beira dos rios amazônicos também tem sido impactada. Uma ribeirinha que pesca no Rio Amazonas, na altura de Santarém (PA), há 16 anos, contou ao GLOBO sob anonimato que pescadores ilegais ostentam armas, desrespeitam os acordos das cooperativas e afrontam os trabalhadores artesanais.

- Eles andam com arma, não podemos bater de frente. É perigoso - diz a ribeirinha.

Procurados, o governo federal e o do Amazonas não se manifestaram sobre as facções criminosas na região. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), a quem cabe a fiscalização de crimes ambientais, também não respondeu.

O Globo, 28/06/2022, Brasil, p. 13

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/06/narcotrafico-garimpo-pesca-e-caca-ilegal-e-contrabando-de-madeira-se-unem-na-amazonia.ghtml
Amazônia:Fronteiras

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