Como uma "transição de cocar para camisa" fez cacique virar prefeito em PE

Uol - https://noticias.uol.com.br - 24/11/2020
Na noite do último domingo (15), índios xukurus dançaram e cantaram nas ruas de Pesqueira, cidade fincada no semiárido pernambucano. O Cacique Marcos (Republicanos), líder do povo há 20 anos, venceu a acirrada eleição no município, que pela primeira vez deve ter um índio como prefeito. Outros nove indígenas, ao menos, foram eleitos pelo país.

Pesqueira tem 67 mil habitantes, sendo 12 mil indígenas aldeados nas terras do povo xukuru. O cacique venceu com 51,6% ou 17.654 votos. Foi a primeira vez que ele se candidatou a um cargo eletivo.

Ciente de que a cidade tem uma minoria indígena, o cacique conta ao UOL que, para alcançar a vitória, iniciou um processo simbólico para trocar o cocar e as pinturas no corpo por uma camisa polo, calça social e sapato. A ideia era convencer o "homem branco da cidade" de que ele poderia ser um bom gestor.

"Nós fizemos aqui um processo de transição. O nosso Instagram mostra bem essa trajetória para trazer esse líder, o cacique, para a cidade", conta o líder indígena.

Foi construída toda uma narrativa para concorrer nas eleições, e fomos buscando fazer um nivelamento de tirar o cocar, botar uma camisa e me apresentar como o administrador Marcos.

O cacique afirma que esse processo foi importante para que vencesse a eleição. "Isso deu um contexto melhor da liderança, com reconhecimento do Cacique Marcos, da aldeia de Pesqueira, para mostrar confiança da população", diz.

Para Marcos, vencer o preconceito contra índios pode ajudar outros povos a terem integrantes na política, especialmente no interior do Nordeste (onde povos indígenas são, em regra, minoria da população).

"Sem sombra de dúvida, o sentimento de preconceito está enraizado no seio da nossa sociedade. Nossa candidatura quebra paradigmas. Há um preconceito velado, institucional, e, mesmo assim, conseguimos trabalhar para chegar a vitória. Que isso sirva de exemplo para termos mais lideranças indígenas", afirma.

Além disso, ele destaca um ponto usado por outros novatos na política: "O nosso povo estava cansado dessa velha política".

"Tínhamos um grupo que se arrastava por mais de 30 anos no poder. Apresentamos uma nova proposição, de gestão participativa, algo nunca visto no nosso município. Construímos isso durante um ano e meio, com demandas da população", explica.
Esquerda ou direita?

A campanha do cacique teve uma coligação com partidos que, em nível nacional, se engalfinham: Republicanos, PT, PTB e PL.

Mesmo filiado e eleito por um partido de direita, Marcos se diz um militante de esquerda, tendo um histórico de luta pelos direitos humanos e causas indígenas. Justifica a escolha por uma garantia de que iria concorrer.

"Eu tentei me filiar a outros partidos de esquerda, mas eles estavam muito ligados ao grupo político daqui. Nossa preocupação era que eles vetassem a minha candidatura em cima da hora. Não me sentia seguro", explica.

Ao fim, o cacique diz que o Republicanos apoiou sua candidatura e não fez qualquer objeção ao seu projeto de governo participativo e voltado para defesa das minorias.

Durante a campanha, recebeu apoio de nomes importantes da esquerda, como um vídeo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A entrada dos petistas da coligação, diz, ocorreu perto da convenção. "O PT acabou sendo o único de esquerda que se alinhou. O partido veio na última hora porque o diretório local conseguiu firmar uma aliança comigo. Mas, depois que me filiei, alguns [desses partidos] migraram para nossa chapa adversária."

Agora diz que vai "lutar por dentro" para guinar o partido mais à esquerda. "Estou entrando no olho do furacão. A minha eleição foi uma quebra no modelo do sistema do partido, do presidente Bolsonaro, que enfraqueceu os conselhos. Vou debater isso agora de dentro", afirma.

O cacique diz que sua história de militante demonstra que ele vai "partir para cima".

Nada vai me inibir a lutar para garantir os direitos das minorias, contra qualquer retrocesso do governo federal ou estadual. Sou crítico desse governo, da forma como ele atua com as minorias, das violações aos direitos.

Cacique Marcos foi uma das lideranças fundamentais para que o povo xukuru tivesse seu território reconhecido e terras demarcadas em Pesqueira.

A demora no processo levou a uma condenação histórica do Brasil na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos).

A sentença foi publicada em 5 de fevereiro de 2018 obrigou o país a pagar US$ 1 milhão ao povo xukuru, o que ocorreu em fevereiro deste ano.

A decisão da CIDH condenou o Estado brasileiro como responsável pelas violações do direito à garantia judicial e à propriedade coletiva previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.

"Foi um processo de longos anos, com ameaças e descaso. Entramos com ação na OEA, que acabou chegando até à CIDH, e o Brasil se tornou réu. Foi uma decisão que contribuiu para outros povos pelo Brasil e na América Latina", afirma.

Hoje, diz que o processo está resolvido. "Nós, xukurus, saímos de uma condição sub-humana, recuperamos nosso território, nossa autoestima".
Espera pelo recurso

Apesar do maior número de votos, Marcos ainda precisa do aval da Justiça Eleitoral para ser prefeito. Ele teve a candidatura indeferida pelo TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de Pernambuco por conta da Lei da Ficha Limpa, mas recorreu.

Ele foi condenado por dano ao patrimônio privado por um episódio de tensão e violência interna, em 2003. Na época, o próprio Marcos foi vítima de um atentado e casas foram incendiadas.

"Nossos adversários entraram na Justiça alegando ilegalidade. Ganhamos na primeira instância, mas perdemos por quatro a três no TRE. Entramos com embargo e estamos aguardando o resultado. Estou confiante na vitória também, porque no voto já venci."




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PIB:Nordeste

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