Queimada em terra indígena destrói até casa e muda festas tradicionais

G1 - https://g1.globo.com - 11/10/2019
No Território indígena Xerente, no Tocantins, quase 140 focos de queimadas foram registrados desde o começo de agosto até 27 de setembro. Na área que fica no Cerrado, um dos focos chegou à aldeia São José e destruiu a casa de Neli Pereira Xerente, de 45 anos. As queimadas que chegaram a desalojar uma família do povo Xerente também afetaram outros povos, afugentando caças, dizimando roças, plantações, árvores com frutas nativas e adiando eventos culturais.

A queimada que destruiu à casa de Neli não deixou feridos, mas prejuízos materiais. "O fogo que pegou na minha casa tava queimando na área mesmo, na área indígena. Eu perdi foi tudo. Salvei só a geladeira, que um menino me ajudou a tirar, mas as camas, roupas, certidão de nascimento das meninas... queimou tudo", contou Neli ao blog.

No dia em que as chamas consumiram a casa de Neli, em 27 de agosto, a comunidade estava fora da aldeia ajudando equipes do PrevFogo a combater as queimadas na região. Naquela data, o satélite Acqua, da Nasa, registrou quatro focos de queimadas no Território Xerente.

"Muitos da aldeia estavam lá em outra região ajudando outros parentes, outra nação. Aí os que [sobraram] aqui não deram conta de apagar o fogo que atingiu a gente", explica a indígena, que tem 10 filhos e agora está provisoriamente em outra casa, menor que a anterior.

"O fogo tá acabando com tudo aqui na região... com a roça, com o mato, com a água nascente... Para comer a gente tem os vizinhos que arrumam algo pra gente [se alimentar]. Por isso tudo que estamos passando por causa do fogo", contou Neli.

Readaptar para sobreviver

A comunidade já está reconstruindo o imóvel. Selma Ekwaidi Xerente, cunhada de Neli, conta que desta vez a cobertura será feita com telhas em vez de palha, como é comum na região. Segundo ela, deixar a palha como material é uma medida de precaução contra os focos mais constantes.

"Eu quase morri de pressão alta no dia em que eu vi a casa da minha cunhada pegando fogo. As coisas que ela perdeu. Está tendo mais fogo nesse ano que nos anos anteriores", conta Selma.

Wagner Katamy Krahô-kanela, um dos líderes da aldeia Lankrarè, também no Tocantins, contou ao blog que o fogo já queimou aproximadamente 40% do seu território. Segundo Katamy, a terra Krahô-kanela tem um total de 31 mil hectares, dos quais foram demarcados como terra indígena apenas 7 mil hectares. A aldeia fica no município de Lagoa da Confusão, a 200 km da capital Palmas.

Ele conta que, primeiramente, um foco havia se alastrado nessa área já demarcada, sendo possível controlá-lo antes que fizesse maiores estragos. No entanto, após resolver a situação, observou um outro foco a aproximadamente 10 km de distância da aldeia. "E esse [segundo foco de] fogo veio de uma fazenda de plantio de soja e arroz irrigado próximo ao Rio Formoso da região", relata.

A aldeia Lankrarè tem parceria de trabalho para vigilância e proteção de território com a Fundação Nacional do Índio (Funai) por meio de sua Coordenação-Geral de Monitoramento Territorial (CGMT) e das Coordenações Regionais do Araguaia, Tocantins e Gurupi, além do apoio do Ibama e do governo do Tocantins.

Katamy conta que desde que começou a ser implementado esse trabalho de vigilância já ajudou a coibir, por exemplo, a entrada de pescadores, madeireiros, caçadores e etc.

Ele explica que os incêndios afetam imediatamente a vida nas aldeias. "Se acham donos de tudo. Colocam o fogo, mas não há controle disso e o fogo vem para a terra indígena e causa esse problema. As crianças estão adoecendo, os velhos com dores de cabeça, nariz doendo... tudo por causa disso", explica.

As queimadas também prejudicam práticas locais de subsistência. "Ao longo do tempo a comunidade indígena aprendeu a plantar a sua roça tradicional, e quando vem o fogo não tem como fazer porque queima antes do tempo e a gente não consegue tirar o nosso alimento, a nossa sustentação", conta.

Há, ainda, uma outra preocupação com todas as modificações causadas pelas queimadas - que afeta o líder indígena. Segundo ele, as futuras gerações indígenas tendem a se distanciar cada vez mais de suas culturas originais. Wagner Katamy teme que esse alto índice de queimadas consuma a "força natural" de suas terras.

"Nós temos que zelar da terra porque outras gerações virão. Será que eles [os jovens] vão conhecer a área indígena que o vô morou, que seu pai morou, que sua tia morou? Assim foi toda vida", diz.

Maranhão

A Terra Indígena Caru, localizada no norte do Maranhão, faz parte de um mosaico formado pelas terras indígenas Alto Turiaçu, Awá e Pindaré. Nos 172 mil hectares da área do Caru convivem dois povos Indígenas: os Guajajara e Awá Guajá - povo isolado e de recente contato com o homem branco.

Ouvido pelo blog, o cacique Antonio Wilson Guajajara conta que as atuais queimadas nas terras indígenas daquela região acabam com as caças, com os peixes (por causa dos igarapés que secam) e com as frutas nativas. No relato do líder há uma preocupação inclusive com a falta de comida para as aldeias, caso a devastação prossiga na região.

Os indígenas também sofrem as consequências das queimadas em seus costumes e ritos. A "Festa da Menina Moça", por exemplo, é um marco tradicional dos povos Awá Guajá para o momento em que a menina índia, entre 11 e 12 anos de idade, menstrua pela primeira vez e ingressa na vida adulta. Nelas, os homens saem da aldeia para caçar os animais que são servidos. Contudo, a festa não acontecerá neste ano.

O cacique Guajajara explica também que, como as queimadas afetam todo o ecossistema, acabam comprometendo, por exemplo, a oferta de animais para a caça, que tradicionalmente é servida como banquete na festa (um dos motivos de a festa ter sido cancelada).

Apesar da época seca do ano ser favorável à proliferação das queimadas, o cacique explica que a ação do homem é responsável por uma larga parcela da devastação. "Muito dos focos de incêndio já foram comprovados que acontecem propositadamente por invasores. Os criminosos, com essas atitudes, esperam que um dia possamos abandonar nosso território para que eles ocupem e, por fim, extraiam toda a nossa riqueza", explica.

O território é considerado por esses povos como sagrado. Eles acreditam que ali ainda habitam seus ancestrais. "Nossa cultura se manifesta e se reproduz ali", conta o cacique Guajajara, pedindo ajuda para as aldeias.








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PIB:Goiás/Maranhão/Tocantins

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