A volta da polícia indígena Ticuna no Alto Solimões

Amazônia Real amazoniareal.com.br - 06/02/2018
Índios Ticuna voltaram a patrulhar por conta própria as ruas das aldeias Umariaçu 1 e 2, na zona urbana de Tabatinga, a 1.105 quilômetros de Manaus, no oeste do Amazonas, região do Alto Solimões. A polícia indígena, que estava desativada há oito anos, foi reorganizada há pouco mais de nove meses, segundo os índios, para combater o consumo de bebidas alcoólicas, tráfico de drogas e homicídios na comunidade.

Eles dizem que o retorno da polícia indígena, chamada de Segurança Comunitária Umariaçu (SEGCUM), acontece diante do descumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) realizado pela Justiça Federal de Tabatinga em que a Polícia Militar seria a responsável pela ronda ostensiva nas noites de finais-de-semana nas aldeias.

Devido à recusa da Polícia Militar em cumprir o TAC, os índios organizaram a segurança com cerca de 50 voluntários, diz o cacique João Cruz, da aldeia Umariaçu 2. Os policias usam calças e camisetas pretas, cassetete na cintura e patrulham as ruas de quinta-feira a domingo, entre as 10 horas da noite até às 3 horas da madrugada.

A polícia indígena foi criada pela, primeira vez, em 2008 pelos indígenas Ticuna com o propósito de dar segurança às comunidades Umariaçu 1 e 2. Chamada de Polícia Indígena do Alto Solimões (Piasol) ou Serviço de Proteção ao Índio (SPI - nome em referência a antiga Fundação Nacional do Índio), chegou a ter um efetivo de 1.500 homens e atuar em oito comunidades, espalhadas por cinco municípios da região do Alto Solimões, na tríplice fronteira entre o Brasil, Colômbia e Peru.

À época a Polícia Federal do Amazonas a classificou como uma milícia devido a denúncias de abusos e violações dos direitos humanos, o que pôs fim a iniciativa dos índios em 2009. Mas até o ano de 2010 os policiais eram vistos nas aldeias do Alto Solimões.


Amazonino não atende cacique

Durante a campanha das eleições proporcionais do ano passado, após a cassação do ex-governador José Melo (Pros), o então candidato Amazonino Mendes (PDT) esteve em Umariaçu pedindo votos aos indígenas. Ele se reuniu com João Cruz. "Contem, se eleito, com a mão amiga de sempre", disse ele, aos indígenas.

Depois que Amazonino foi eleito, o cacique João Cruz disse que pediu ao governo a segurança da Polícia Militar na aldeia. "Eu já mandei quatro documentos para a Polícia Militar, sobre esse negócio de droga, mas até agora nada", protesta ele. "Dizem que quem pode autorizar é a Funai, mas a Funai já autorizou, já fui na Justiça. Já está tudo autorizado, não sei o que estão esperando ", explicou.

Entre os meses de novembro e dezembro de 2017, João Cruz disse que esteve em Manaus para tentar uma audiência com Amazonino Mendes para pedir o prometido policiamento da Polícia Militar na aldeia Umariaçu 2.

Depois de três semanas e diversas reuniões desmarcadas, o cacique voltou a Tabatinga sem conseguir o encontro com Amazonino ou mesmo um compromisso da Secretaria de Segurança Pública o caso.

A agência Amazônia Real procurou a Secretaria de Segurança, via assessoria de imprensa, mas também não obteve resposta sobre o porquê a Policia Militar não fazia o policiamento nas aldeias Umariaçu 1 e 2, além de Belém do Solimões.


Funai monitora retorno da polícia

Na Terra Indígena Ticuna Umariaçu, que fica entre Tabatinga e São Paulo de Olivença, vivem mais de 50 mil pessoas. É a maior população indígena do país. Somente nas aldeias Umariaçu 1 e 2 vivem 7.219 pessoas.

A volta da polícia indígena, agora Segurança Comunitária Umariaçu (SEGCUM), é acompanhada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), subordinada ao Ministério da Justiça. A fundação orienta as comunidades a buscar outras alternativas para superar a falta de segurança, segundo a coordenadora regional da Funai no Alto Solimões, Mislene Mendes.

Ela diz que a SEGCUM é uma iniciativa fragmentada, tomada individualmente pelas comunidades, sem a mesma adesão que ocorreu anteriormente. "Cada comunidade está retomando da maneira que acha ", afirma a coordenadora da Funai no Alto Solimões.

"Eu tenho acompanhado mais a situação da Terra Indígena Santo Antônio, das comunidades Filadélfia, Bom Caminho, Porto Cordeirinho, Santo Antônio e Bom Jardim. Eles solicitaram apoio da Funai para realizar algumas oficinas pra tentar ver algumas estratégias de como a Funai poderia ajuda-los a fortalecer, não a guarda, mas fortalecer sob essa demanda (segurança pública) junto ao próprio estado, junto à Funai, ao MPF, Estado", disse ela.

Nessas comunidades, segundo Mislene Mendes, os índios chegaram ao consenso de que não deveriam fazer o papel do Estado ou da polícia, mas fortalecer a organização e exigir que as instituições cumpram o papel delas. Nesse caso, a Funai atua como um mediadora e orientadora, conforme ela explica, para que os índios tenham direito à segurança, mas que haja respeito à legislação e aos direitos de crianças, idosos, mulheres e outros grupos.


PF proíbe arma de fogo

Entre os anos de 2008 e 2009, a Polícia Indígena do Alto Solimões (Piasol) chegou a montar oito companhias, em cinco municípios do Alto Solimões. Segundo eles próprios, o contingente chegou a 1.500 voluntários (3% mulheres). A Polícia Federal suspeitava de relações entre as milícias e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

A Piasol chegou a receber apoio do Ministério Público Federal. Em Despacho do dia 03 de dezembro de 2008, a procuradora da República Maria Clara Barros Noleto considerava a polícia indígena "legítima e plenamente aplicável dentre os membros daquele grupo social e no território indígena". O despacho atendia a um pedido da comunidade de Umariaçu 2 e se baseava no que a procuradora entendia como "princípios constitucionais de valorização à diferente".

No mesmo documento, ela informava que já havia sido requisitada à autoridade policial de Tabatinga a instauração de inquérito para investigar a venda de bebidas alcoólicas e o tráfico de drogas na área indígena.

O apoio do MPF terminou quando a Polícia Indígena tentou institucionalizar a iniciativa, em 2009, com a criação do "Estatuto Único da Polícia Indígena do Alto Solimões", que indicava a criação de cargos públicos, uso de patentes militares e remuneração aos "policiais", paga pelo governo federal. A procuradora Maria Clara Noleto considerou que houve extrapolação por parte dos índios.

Eles tiveram o pedido para o uso de armas negado, embora outras reivindicações tenham sido discutidas, sem ser descartadas logo de início. A essa altura, Polícia Federal e Fundação Nacional do Índio (Funai) já consideravam as guardas indígenas como milícia. As guardas indígenas passaram a ser alvo de denúncias devido a denúncias de exageros, violações e até um homicídio.

Em novembro de 2009, houve um conflito entre a Piasol e um grupo de indígenas na aldeia Belém do Solimões (AM), que terminou com 11 feridos. Os revoltosos atearam fogo no alojamento da milícia, uma reação contra a apreensão de cachaça e cervejas. O delegado da milícia, segundo depoimento de guardas indígenas, autorizou o uso de armas. Foram disparados tiros de espingardas calibres 12 e 16, que atingiram inocentes.

A morte do pajé em uma comunidade de São Paulo de Olivença, em 2009, também foi investigada pela polícia federal. Ela chegou a ser atribuída à "milícia", mas não houve comprovação do caso.

"Isso (denúncias) levou o Ministério Público Federal a um grande questionamento, a várias indagações, (até que os procuradores) emitiram uma certidão para que agrupamento cessasse com qualquer atuação nas comunidades, por conta dos exageros", afirma coordenadora da Funai no Alto Solimões, Mislene Mendes, que é antropóloga e indígena da etnia Ticuna. Sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) foi justamente sobre a polícia indígena do Alto Solimões.


Fora da tradição

Durante o mestrado, Mislene apresentou a situação vivida pelos índios Ticuna que levou à criação da polícia indígena e a trajetória dessa iniciativa. A guarda indígena, conforme ela relata, não é uma organização tradicional, mas sim uma resposta à ineficiência do estado e falta de segurança pública.

Entre as contradições da Polícia Indígena apresentadas por Mislene em sua dissertação está a compreensão de "criminalidade" por parte dos indígenas, que nem sempre coincide com as ilegalidades previstas na lei brasileira. Entre as atribuições das polícias indígenas, em desacordo com a legislação do país, estava por exemplo, a proteção da comunidade contra questões como feitiçaria, consumo excessivo de álcool e homossexualidade.

"A noção de crime vai além da noção de crime da sociedade não indígena ", afirma Mislene Martins.

"Diziam que na comunidade vários meninos estavam virando homossexuais, aquelas coisas. Eles pegavam todas essas situações e colocavam na caixinha de crimes."

Na época em que produziu a dissertação, a antropóloga estagiava no Ministério Público Federal em Tabatinga, onde tinha contato com as denúncias apresentadas pelas comunidades indígenas, que nem sempre eram compreendidas por procuradores e auxiliares.

"Chegavam lá caciques, lideranças denunciando ocorrências de feitiçaria ", lembra Mislene Mendes.

"Eles denunciavam alguém que acusavam que era feiticeiro, que estava fazendo todo mundo ficar doente, que estava levando a perspectiva dos jovens ficarem ainda mais viciados em bebidas alcóolicas e tudo mais. Então eles solicitavam aos procuradores alguma providência contra a pessoa acusada de feitiçaria. O pessoal ficava sem entender o que estava diante deles como alvo de uma denúncia."


Jovens sem opção

A Terra Indígena Ticuna Umariaçu é demarcada, mas com o avanço urbano da cidade de Tabatinga lembra mais ser um bairro de periferia do que uma aldeia tradicional. Nos dois núcleos urbanos da TI, Umariaçu 1 e 2, separados por uma ponte, vivem cerca de 7.219 faltantes da língua Ticuna. Os indígenas enfrentam problemas típicos das populações pobres das cidades, falta de empregos e de serviços públicos e alta criminalidade.

"Aqui têm muitos jovens sem emprego, muitos ficam à noite por aqui, consumindo álcool e drogas, criando problemas pra comunidade", afirma o cacique de Umariaçu 2, João Cruz. "A gente já falou com a Funai, com a Polícia, mas ninguém vem fazer a segurança aqui. Um fica dizendo que a responsabilidade é do outro", reclama o cacique.

O cacique reclama da falta de oportunidade para os jovens, que após terminarem o ensino médio não encontram emprego. O resultado, na avaliação dele, são as chamadas "galera" (nome regional dado a bandos), que atormentam a vida da comunidade, principalmente à noite, com uso de álcool e drogas e brigas com rivais da comunidade vizinha, Umariaçu 1.

Adolescentes e jovens flagrados bêbados, usando drogas ou causando confusões são colocados em celas, onde podem passar até duas noites. São espaços pequenos, com pouco mais de um metro de largura, improvisados nos fundos de um palco de alvenaria, onde ocorrem atividades culturais.

"Têm pais que concordam e falam pra gente deixar, mas tem pais que não gostam e aí gente tira, mas fala para eles cuidarem dos jovens", conta o líder da segurança indígena, Cristóvão Pinto.

Os guardas dizem que, desde a recriação da SEGCUM, não precisaram usar os cacetes, pois gozam do respeito mesmo de quem é contrariado pelas ações. A comunidade garante que desde a volta dos seguranças as noites têm sido bem mais tranquilas nas ruas do Umariaçu 2.

Entre os seguranças da SEGCUM, há três mulheres. Sara Ângelo, filha do pajé da comunidade, é uma delas. Ela conta que o trabalho é voluntário. Se mulheres casadas na cidade estão sujeitas a dupla jornada de trabalho, cuidando de casa e filhos, além de trabalhar fora, Sara enfrenta uma tripla jornada: casa, roça e patrulha das ruas da comunidade.

Mãe de dois filhos, um ainda sendo amamentado, ela precisa interromper a ronda para atender a fome da criança. Nas noites de patrulha, dorme de madrugada e acorda logo que o sol nasce, para cuidar da roça. À noite, vai pra casa.

"Eu acho que meus filhos estão mais seguros comigo aqui, cuidando das ruas, do que se eu estivesse lá, sem fazer nada", afirma.


Quem são os Ticuna?

O povo indígena Ticuna, que se autodenomina Magüta, habitam também territórios da Colômbia e do Peru. Possuem uma língua própria, considerada isolada, ou seja, não possui tronco linguístico comum a outros idiomas indígenas.

Apesar da história de contato com a sociedade não indígena ser antiga e violenta, com ataques e invasões de suas terras, somente na década de 90 do século 20 é que a maioria de seus territórios foi demarcada. Os Ticuna também vivenciaram um período de forte avanço de missões religiosas e de grupos considerados messiânicos, especialmente na primeira metade do século passado e cujo legado permanece até hoje nas comunidades.




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PIB:Solimões

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