A "Polícia Indígena do Alto Solimões" e outras ações propositivas

Amazônia Real amazoniareal.com.br - 06/02/2018
Desde 2008, acompanho o desenvolvimento de uma forma alternativa de organização denominada "Polícia Indígena do Alto Solimões", criada pelos Ticuna da Terra Indígena Umariaçu, situada no município de Tabatinga, e posteriormente difundida pelas demais TIs e aldeias da região. Com o passar do tempo, venho observando o quanto a pauta das discussões indígenas tem mudado desde os anos 1980, quando a principal reivindicação era a demarcação dos territórios tradicionalmente ocupados. Em meados dos anos 1990, o movimento indígena Ticuna no Alto Solimões passou a ganhar visibilidade no contexto regional e nacional, por conta de sua organização para defesa étnica, cultural, social e territorial, apropriando-se de novos conhecimentos e habilidades necessários para lidar com as transformações nas relações inter e intra étnicas, ocorridas nos últimos anos. É preciso destacar também que a rede ampliada de relações dos Ticuna do Alto Solimões extrapola as articulações políticas do movimento indígena nacional, se considerarmos sua vivência e circulação nos três lados da fronteira que divide o Brasil, Peru e Colômbia.

Em meados de 2007, caciques e lideranças Ticuna iniciaram suas idas e vindas reivindicatórias a diversas instituições estatais (Funai, PF, MPF, etc.) em busca de uma estratégia de ação sociopolítica e de resistência étnica para resolução de conflitos e casos de violência dentro das comunidades. Historicamente, a relação dos indígenas com os agentes da política indigenista na região esteve sempre num patamar hierarquicamente desigual e sem pontos de conciliação e negociação. Nesse contexto recente, intensificaram-se as reivindicações por providências e medidas externas, provenientes do Estado, com relação à situação de vulnerabilidade social vivenciada em Umariaçu e nas demais comunidades indígenas do Alto Solimões.

Assim, a busca pelos órgãos estatais passou a ser uma estratégia de luta bastante recorrente, na medida em que os Ticuna passaram a acreditar que, quanto mais lideranças fossem, por exemplo, ao MPF para reivindicar por soluções imediatas, mais força teria a reivindicação e mais possibilidade teria de ser atendida. Neste contexto, dois fatores se revelaram muito importantes nas discussões entre os Ticuna. Primeiro, o reconhecimento social de questões que geram a violência e a sensação de insegurança. E segundo, o protagonismo indígena no estabelecimento de estratégias e ações para amenizar a insegurança coletiva em suas comunidades. Até então, as ações dos caciques e lideranças se resumiam à intenção de promover proteção e segurança aos membros de suas comunidades, contra os riscos causados pela desordem e violência ali existentes. Com a ideia de que suas comunidades estavam doentes, seus discursos envolviam um conjunto de elementos interligados na vida humana Ticuna: territorial, ambiental, político, social, cultural, espiritual e físico. Para eles, somente com o reequilíbrio de todos esses elementos, a comunidade poderia recuperar sua saúde. Mas como encontrar o ponto de equilíbrio desses elementos dentro do contexto social que vivenciam os Ticuna? Os agentes sociais que faziam constantes reivindicações possuíam como objetivo a satisfação coletiva e a garantia de uma vida sem medo e violência nas comunidades, embora esta ideia de satisfação não alcançasse a integração entre todos esses elementos.

É preciso dizer que, embora temas como a segurança nas comunidades venham ganhando destaque, a questão do reconhecimento dos territórios jamais ficou de fora da iniciativa das lideranças e caciques Ticuna de aprofundarem suas relações com as instituições estatais, que são reconhecidas por eles com atribuições de proteger e promover os direitos indígenas. Assim, no atual contexto interétnico, os Ticuna vêm expressando várias reivindicações aos órgãos do Estado (Municipal, Estadual e Federal), para que estes tomem providências para sanar os problemas existentes nas comunidades. Conclui-se, portanto, que hoje os Ticuna necessitam de articulação, não apenas entre os indígenas, mas também com agentes e agências do Estado.

Vale ressaltar aqui as diferenças entre os cenários mais antigos do indigenismo no Brasil, nos quais os índios não tinham espaço para se mobilizar a favor de seus direitos e interesses, e os atuais cenários do movimento indígena, marcado por um notável aumento no número de indígenas que passaram a ocupar espaços e posições nas instituições estatais responsáveis pela atenção diferenciada aos povos indígenas. Mas ocupar cargos e posições não é suficiente para que haja participação indígena nas políticas públicas, uma vez que existem múltiplos sentidos para o papel exercido pelos indígenas que assumem funções dentro de instituições do Estado, principalmente as de chefia. Nestes contextos, suas concepções sobre os papéis e atribuições das autoridades passam a ser redefinidas. Para alguns significa a garantia de pontos de apoio em referência ao grupo étnico. Para outros, trata-se de uma autoridade que não pode ultrapassar as limitações impostas pelo Estado, ocasionando internamente cisão social. Por outro lado, não raro acontece o inverso, isto é, situações em que alguns funcionários indígenas atuam e discursam dentro de instituições do Estado como estivessem na qualidade de caciques ou lideranças de suas comunidades.

A Constituição Federal de 1988, e outros instrumentos da legislação indigenista, reconhecem a cidadania indígena diferenciada, tendo seus direitos e interesses protegidos e promovidos pelo Estado brasileiro, sobretudo pelo órgão indigenista oficial (Funai) e demais entidades com atribuições específicas. Deste modo, no decorrer das reivindicações dos Ticuna por segurança pública em suas comunidades, a concepção de cidadania indígena é sempre acionada pelos indígenas por estar garantida na legislação brasileira. Devemos considerar que a Constituição Federal de 1988 dispõe de um capítulo específico que trata dos índios e seus interesses por conta de intensa mobilização indígena anterior aos anos 80 em nível nacional e internacional, propiciando mudanças nas relações entre os povos indígenas, o Estado e a sociedade não indígena. Nesse sentido, as mudanças sociais ocorridas nas relações entre segmentos da população nacional dominante e segmentos das populações indígenas foram marcadas e limitadas pela situação de choque de interesses e ideologias de diversos atores da sociedade nacional, principalmente na conjuntura política nacional em que estamos a qual contribui em suma para as diversas formas de violação dos direitos indígenas.

O novo cenário de relações sociopolíticas dos Ticuna abrange desde a construção e articulação de estratégias e formas etnopolíticas tradicionais, até o esforço de alcançar novas posições e interesses individuais e/ou coletivos bastante eficazes para manutenção de prestígio social. Enfim, a força da rede de relações de poder assegura a capacidade de negociação de ações e estratégias entre os Ticuna frente ao Estado, através de reivindicações que propõem, por exemplo, a criação da guarda indígena como mecanismo para solucionar problemas como a comercialização e consumo de bebidas alcoólicas e drogas, ou repressão às práticas criminosas e violentas.

No decorrer da atuação da polícia indígena, os Ticuna passaram a reivindicar e propor reconhecimento funcional dos indígenas, também como solução para outro problema que é o desemprego e a falta de expectativas para reservistas indígenas do Exército Brasileiro, bem como pelo fato de executarem atividades cuja atribuição é do Estado, conforme afirmação do representante da PIASOL, Odácio Bastos, na época de 2011. Em suma, os próprios Ticuna ressignificam os mecanismos de ordem e proteção provenientes do Estado, a partir de suas proposições étnicas de como esses elementos devem atuar no interior das comunidades ao enfrentar práticas violentas dos indivíduos.

Foi assim que, em 2008, caciques e lideranças Ticuna reivindicaram respostas e providências do MPF para reprimir o intensivo uso de álcool e entorpecentes químicos, assim como o aumento dos índices de violência física e moral dentro das comunidades. Como já foi ressaltado, longe de ser espaço de consenso e harmonia, as comunidades indígenas se caracterizam por serem espaços de encontro de distintas visões políticas, culturais e sociais relacionadas à tomada de decisões coletivas para resolver os problemas internos. Portanto, a demanda pelo apoio de instituições estatais também é pauta de discussão sobre que caminhos os Ticuna deveriam tomar para encontrar as soluções para os problemas de violência interna, que um dos caciques da TI Umariaçu chama de "violência permitida pelas instituições irresponsáveis pela aplicação das leis, que após tantos pedidos, até hoje não apresentaram nenhuma resposta que realmente trouxesse a segurança pública para dentro das aldeias".

Assim, ao propor a criação de uma organização (polícia) já instituída dentro da estrutura estatal, os Ticuna ressaltam não apenas a intenção de exercer plenamente sua autonomia, como também apontam uma solução concreta para a ausência de políticas públicas apropriadas em seus territórios. Sobre a ideia de autonomia (política, econômica) lideranças e caciques Ticuna reafirmam a importância de serem eles mesmos, os protagonistas da formulação e controle de políticas públicas do interesse de suas comunidades, garantindo a auto-governança territorial e ambiental.

Como se nota, de um modo geral, a principal demanda dos Ticuna é o pleno reconhecimento de seus direitos enquanto povos indígenas, o que, na prática, o Estado nem sempre compreende ou simplesmente não sabe como fazer e por onde começar. O maior problema, portanto, não é a falta ou a inexistência de leis, mas a dificuldade de aplicá-las de modo eficiente desde o princípio. E este é o grande desafio vivido não só pelos Ticuna, como pelos mais diversos povos indígenas por todo o país.

É importante ressaltar que embora esta forma alternativa de organização (guarda ou polícia) possa moldar os posicionamentos políticos dos Ticuna, suas características específicas também os fazem repensar o próprio conceito e forma de exercer o poder político internamente, à maneira tradicional. Neste sentido, esta forma organizacional não deve ser confundida com as formas de organização tradicionais. Ou seja, a guarda e, posteriormente, a polícia indígena foram concebidas pelos Ticuna como a aplicação de um mecanismo repressivo institucionalizado para conter a violência no interior das aldeias.

A tomada de decisão de atribuir a si próprios a função de promover a segurança pública nas aldeias deve ser pensada como uma resposta étnica às novas condições e modos de vida de suas comunidades. Esta luta evidencia que os Ticuna não se apropriam de políticas e ações do Estado brasileiro como ponto de partida para proporem soluções para seus problemas internos, mas sim como ponto de chegada do protagonismo Ticuna que monta suas estratégias conforme os desafios e situações sociais, em cada contexto historicamente vivenciado.

Atualmente, prevalece a sensação de que problemas relacionados à Segurança Pública em Terras Indígenas são por hora sem solução, não apenas para os Ticuna sujeitos desta pesquisa, como também para toda a população do Alto Solimões, localizada na tríplice fronteira, uma região que problemas sociais de criminalidade e violência estão em vários lugares, dentro de um processo bem maior que vem ameaçando cada vez mais os povos indígenas e populações locais desse território diverso e complexo sem quase nenhuma garantia de proteção individual e coletiva.



Nota:

Este artigo resume argumentos apresentados em minha dissertação de mestrado, A Trajetória da Polícia Indígena do Alto Solimões: política indigenista e etnopolítica entre os Ticuna, defendida na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em 2014, orientada pela Profª Drª Maria Helena Ortolan-Museu Amazônico/PPGAS/UFAM.




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