Encontro Guarani: entre a beleza da reunião e as contradições da política

Brasil de Fato - http://migre.me/jJUt - 11/02/2010
Num mundo como o guarani, em que "cultura" é um termo estreitamente vinculado a temas como terra, saúde e educação, a pauta oficial do encontro terminou praticamente confinada a questões ligadas à área da "cultura" conforme entendido por nós, brancos

Spensy Pimentel

Diamante D'Oeste (PR)


Fica, desde já, como marco histórico o Encontro dos Povos Guarani da América do Sul - /Aty Guasu Ñande Reko Resakã Yvy Rupa/, durante a última semana, na Terra Indígena Tekoha Añetete, em Diamante D'Oeste (PR). Entre as centenas de participantes do evento, não se encontrava indígena que não estivesse encantado com a beleza da reunião de tanta gente com fala, gestos e hábitos tão próximos, mas tão afastados no tempo e no espaço - sobretudo devido à violência da colonização nos últimos séculos.


Se alguns grupos como os Guarani do litoral do Sul e do Sudeste do Brasil mantêm até hoje um constante intercâmbio, em uma gigantesca rede que vai do Espírito Santo até a Argentina, outras parcelas desse povo vivem praticamente à parte das demais. Para se ter uma idéia, os Guarani da Bolívia (outrora conhecidos como Chiriguanos), que migraram para lá há mais de 400 anos, vindos da região que hoje corresponde à fronteira entre Mato Grosso do Sul e Paraguai, nunca mais haviam mantido contato regular com os Guarani do Brasil. Em Añetete, muitos se emocionaram ao conhecer seus "parentes" distantes.


"A língua é muito parecida. A parte religiosa, também. Às vezes a dança é um pouco diferente, um tem o violão, o outro não, mas o conteúdo é muito parecido. Somos um só povo", orgulha-se Marcos Tupã, cacique da aldeia de Krukutu, de São Paulo, lembrando os vários momentos em que os xamãs guarani exibiram seus cantos e danças durante o encontro. "Acima de tudo, é maravilhoso, muito bonito esse reencontro", diz Williams Cerezo Villa, representante dos Guarani da região de Chuquisaca, na Bolívia.


Num mundo como o guarani, em que "cultura" é um termo estreitamente vinculado a temas como terra, saúde e educação, a pauta oficial do encontro terminou praticamente confinada a questões ligadas à área da "cultura" conforme entendido por nós, brancos. Organizado pelo Ministério da Cultura (MinC), o evento culminou no lançamento de uma carta de reivindicações, recebida pelos ministros de Cultura do Brasil, Juca Ferreira, e do Paraguai, Ticio Escobar.


A carta pede a criação de uma Secretaria Especial de Representação do Povo Guarani, vinculado ao Mercosul Cultural, com integrantes escolhidos pelos próprios indígenas, além de um debate permanente, no âmbito do bloco, sobre os direitos dos Guarani, incluindo-se a realização de encontros regulares do povo Guarani de Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia. O Mercosul, reivindica o documento, tem de mudar suas leis de fronteira para permitir o "livre trânsito cultural" dos indígenas, num território que "sempre pertenceu" aos Guarani. De forma sintética, ainda são reivindicadas políticas públicas para gestão territorial, saúde, educação e comunicação, entre outros, além de combate ao preconceito e violência contra os indígenas.


Para vários dos participantes, a carta, ainda que limitada em seus temas, já representa uma vitória, dada a histórica dificuldade na relação dos povos indígenas com os Estados nacionais da região. "Estamos começando a abrir a porta e olhar para dentro da casa para ver o que tem", compara o cacique kaiowa Ambrósio Vilhalba, da aldeia Guyraroka, de Caarapó (MS). Há três anos, Ambrósio foi a estrela do longa-metragem "Terra Vermelha", do ítalo-chileno Marco Becchis, um filme de ficção que espelhou muito de sua luta real como líder indígena.


Para representantes dos Guarani da Bolívia e do Paraguai, entretanto, onde os povos indígenas têm maior tradição de participação na vida partidária e organização como movimento social, faltou "política" no evento. "Faltou uma análise da conjuntura de cada país. Nós pedimos, mas ninguém deu bola. Há alguns indígenas que são funcionários do governo e eles não querem chocar seus patrões", critica Mario Rivarola, da Organização Nacional dos Aborigenes Independentes (ONAI), do Paraguai.


"Na Bolívia, temos um sistema muito avançado política e organicamente, também porque contamos com um indígena na Presidência da República, e estamos numa transição do neoliberalismo para um Estado plurinacional. Queremos dar mais apoio a nossos irmãos do Brasil e do Paraguai", diz o já citado Williams, que além de cacique dos Guarani em Chuquisaca, também representou a Assembléia do Povo Guarani (APG) no evento no Paraná.


A APG surgiu nos anos 80 e hoje suas decisões são reconhecidas pelo Estado boliviano como decisões tomadas pelo povo guarani. Tem uma estrutura de escolha de representantes em mais de 350 comunidades, com processos de decisão, mandatos e encargos bem definidos. O ex-presidente da APG Wilson Changaray se elegeu deputado para o Parlamento Boliviano em dezembro, junto com outros dois Guarani. Williams diz que os Guarani da Bolívia não vêem contradição entre participar da vida política do país e manter suas tradições: "Não é que estamos esquecendo nossa cultura. Estamos entrando na política para depois transformá-la conforme os nossos interesses e pontos de vista. Estamos como que camuflados".



Contradições

Num governo com o perfil do brasileiro, com ministérios inteiros francamente alinhados com setores conservadores, é, certamente, notável ouvir do Ministro da Cultura, Juca Ferreira, declarações de apoio às reivindicações indígenas. "Nós, do Ministério da Cultura, não temos nenhum medo da presença de povos indígenas na região de fronteira e da demarcação de suas terras", disse ele durante sua presença no encontro, na última sexta-feira. "Pensem em nós como aliados."


As contradições, contudo, não passaram longe de Añetete. O encontro teve o patrocínio da binacional Itaipu, que tem em seu histórico uma série de violações aos direitos dos Guarani. Do lado brasileiro, a empresa já assumiu, há alguns anos, o ônus da reparação a diversas comunidades pela retirada forçada de aldeias inteiras à época da formação do lago da usina, nos anos 70. A Tekoha Añetete é uma das terras indígenas formadas depois de muita disputa e ocupações de terras.


Ainda assim, há uma série de outras comunidades que não consideram resolvida sua disputa com a empresa. Entre os participantes do evento, estavam Oscar Benitez e Arnaldo Alves, dois Avá-Guarani da aldeia de Vy'a Renda, uma ocupação de terra ainda não regularizada, na região de Santa Helena, a cerca de 40 km do local onde aconteceu o encontro. Eles contam que não só a comunidade deles, como pelo menos outras quatro, nos municípios de Guaíba e Terra Roxa não foram sequer convidadas a participar do evento. "Nem Funai, nem Itaipu nos dão apoio lá onde estamos. Só o Ministério Público conseguiu que pelo menos tenha atendimento de saúde", conta Oscar.


O Ministério da Cultura diz que a responsabilidade pelos convites para o evento era dos próprios índios, conforme estabelecido nas reuniões preparatórias. Não foi possível fazer contato telefônico com o cacique Mário, de Añetete, que, segundo o ministério, era responsável pelo convite às aldeias dessa região. Até o fechamento desta matéria, a assessoria de Itaipu não respondeu às mensagens eletrônicas da reportagem.


Do lado paraguaio, o problema com Itaipu é muito maior. Mario Rivarola, da ONAI, conta que foram 60 as comunidades desalojadas por Itaipu nos anos 70, muitas vezes com uso da força (à época, o país era governado pela ditadura do general Augusto Stroessner). "Faziam promessas, diziam que iam reassentar e indenizar as pessoas. Tudo ficou só na teoria. Os que não aceitavam sair eram levados por policiais e militares", diz ele. "O que mais nos dói é que obrigaram as comunidades a sair, mas as áreas não foram alagadas. Hoje estão ocupadas por grandes fazendas."


Rivarola diz que o contraste com a situação das comunidades brasileiras que já receberam indenização de Itaipu é gritante. "Aqui elas já têm escolas, postos de saúde. Lá, ninguém recebeu um tostão de Itaipu, o dinheiro foi todo embolsado pelos corruptos do país", relata. Mesmo o governo de Fernando Lugo, que quebrou a hegemonia centenária das oligarquias no poder, ainda não foi capaz de reverter a situação, lembra ele: "Durante muito tempo os liberais continuaram mandando em Itaipu, recentemente é que foi revertida a situação. Esperamos que seja montado um programa de apoio ao desenvolvimento dos povos indígenas. Até agora, o que há é, no máximo, assistencialismo".



O Estado contra
Se o evento de Diamante D'Oeste pode ser considerado um marco na relação dos Guarani com os governos da região - uma vez que, pela primeira vez, surge a possibilidade de serem ouvidos como um povo pelo conjunto dos países que habitam -, vale lembrar que não chega a ser inédito, considerando apenas a articulação que promoveu.


Desde 2007, um grupo de organizações indígenas e indigenistas promove a campanha independente Povo Guarani, Grande Povo (www.campanhaguarani.org.br), com o objetivo de articular as populações guarani dos diversos países e lutar pelo reconhecimento de seus direitos. A iniciativa surgiu como fruto do 1 e do 2 Encontro Continental do Povo Guarani, realizados ambos no Rio Grande do Sul, em 2006 e 2007. O primeiro desses encontros, em São Gabriel, lembrou os 250 anos do martírio do herói Sepé Tiaraju e reuniu mais de 1.000 Guarani do Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai.


Ainda que, no Brasil, o governo federal se mostre mais permeável ao diálogo com os indígenas, vale lembrar que o encontro do Paraná originalmente estava programado para ocorrer no final de 2008 entre Dourados e Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Foi transferido porque não só os políticos locais se negaram a dar apoio à realização do evento como ainda hostilizaram os organizadores.


Segundo fontes ouvidas pela reportagem, autoridades da região chegaram a dizer que seria uma "afronta" aos governos locais a realização do evento. Boatos começaram a circular dando conta de que os fazendeiros se articulavam para armar um confronto com os índios caso houvesse o evento e, por fim, o Ministério da Cultura resolveu transferir o evento devido à "falta de segurança".


No Mato Grosso do Sul vivem 45 mil, dos 55 mil Guarani que moram no Brasil. A tensão entre índios e fazendeiros aumentou na região depois que, em 2008, a Funai editou portarias de demarcação de terras em 26 municípios da região sul do estado. Desde então, o governo de André Puccinelli (PMDB) e seus prefeitos aliados vêm assumindo postura sistematicamente contrária aos índios - chegando a disponibilizar recursos públicos para que fazendeiros contestem os estudos antropológicos que definem as terras a serem declaradas como de ocupação indígena tradicional. Vários indígenas já morreram ou foram feridos em confrontos desde então.


"Em muitas regiões do Brasil, os Guarani são discriminados e perseguidos, impedidos de acessar seus direitos. Isso é inadmissível", afirmou o ministro Juca Ferreira em seu discurso no encontro. Em entrevistas e conversas que manteve em Añetete, ele lamentou a transferência do evento. Por enquanto, a verdadeira afronta, dos políticos sul-matogrossenses ao poder federal e aos direitos indígenas, fica por isso mesmo.
Índios:Política Indígena

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