Câmara aprova marco temporal em dia de protestos indígenas no país

Amazônia Real - https://amazoniareal.com.br - 30/05/2023
Câmara aprova marco temporal em dia de protestos indígenas no país
Proposta do marco temporal é considerada um retrocesso para as demarcações de terras indígenas e pode prejudicar acordos internacionais de investimentos no Brasil relacionados ao meio ambiente. Lideranças chamam de genocidas os parlamentares favoráveis ao projeto de lei.

Cristina Ávila

30/05/2023

Brasília (DF) - A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (30), por 283 votos a 155, o Projeto de Lei 490/2007 que pode inviabilizar demarcações dos territórios indígenas no Brasil e é considerado um grave retrocesso contra os povos originários. A aprovação ocorreu em meio a protestos de indígenas em todas as regiões do país contra o que é considerado uma das pautas mais genocidas do Congresso Nacional.

Na sua rede social, logo após a votação, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que também é deputada federal (PSOL-SP), disse que a aprovação do PL 490/2007 é um "um ataque grave aos povos indígenas e ao meio ambiente". Ela afirmou que haverá diálogo no Senado para "evitar a negociação de nossas vidas em troca de lucro e destruição".

Antes da votação, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) fez um forte protesto na Câmara, pintando seu rosto de urucum, repetindo o histórico gesto do líder Ailton Krenak, em setembro de 1987, durante os debates para aprovação da Constituição de 1988, quando ele pintou o rosto de tinta de jenipapo.

"Hoje, na verdade, vocês terão sangue indígena nas mãos. Como vocês querem ser lembrados nesse Brasil tão diverso? O povo brasileiro que tem origem de sangue indígena na veia ou que tem origem de sangue indígena nas mãos? Nós precisamos lembrar de um Brasil verde amarelo, mas também de um Brasil vermelho de urucum", disse a deputada.

A advogada do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula, disse à Amazônia Real que a aprovação do PL na Câmara dos Deputados ainda não faz a proposta virar lei e que o Senado Federal terá que analisá-lo.

"O presidente [Lula] poderá vetá-lo, ou seja, discordar de seu conteúdo. Só depois da avaliação do Senado, na análise ou veto do presidente da República, é que o PL vira lei e esse ainda pode ser um longo caminho. Depois disso, o STF ainda pode decidir se a lei é válida ou não", explicou Juliana, coautora de uma nota técnica enviada à Câmara dos Deputados pontuando as irregularidades do marco temporal.

"A proposta, se aprovada, ressoará como uma 'pá de cal' aos acordos internacionais e investimentos que o Brasil pretende obter. Além disso, poderá aumentar o desmatamento, as invasões de terras, ante a expectativa de anulação dos processos de demarcação e incitar mais violência contra os povos indígenas", diz trecho da nota.

Nesta terça-feira, na iminência da votação do PL, indígenas e aliados promoveram uma mobilização em várias capitais do país, nas cidades, nas aldeias e nas redes sociais. Foi realizado um tuitaço ao meio-dia contrário à aprovação. A mobilização contou com apoio de políticos e celebridades nacionais e internacionais. O ator norte-americano Mark Ruffalo, conhecido por apoiar lutas históricas de povos indígenas e pautas ambientais, desde ontem vem dando declarações em defesa dos direitos indígenas. Uma de suas postagens no Twitter diz: "uma guerra contra os povos indígenas e florestas". Ele alertou: "Nosso planeta está em risco".

O critério do marco temporal praticamente elimina o direito de todos os povos originários a seus territórios, inclusive aqueles que já têm garantia de áreas demarcadas e homologadas para seu usufruto. Atinge também os chamados povos de isolamento voluntário.

O PL 490 foi apresentado em 2007 pelo então deputado matogrossense Homero Pereira (PR). Com a aprovação do PL, as terras indígenas passam a ser demarcadas por lei, ou seja, pelos parlamentares, submetendo o processo aos interesses políticos da bancada, deixando de ser regularizadas pelo Executivo Federal.

O marco temporal também vem sendo discutido no âmbito do judiciário quando a tese surgiu em 2009, no processo de julgamento da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, pelo STF. A Corte estabeleceu condicionantes e isso foi interpretado como uma forma de atender interesses ruralistas. A tese ganhou força quando os indígenas Xokleng entraram com um Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) pelo direito de uma área da TI Ibirama-Laklãnõ, que foi ocupada pelo governo de Santa Catarina. O processo tramita no STF e a decisão dos ministros terá repercussão em todas as terras indígenas.

No STF, onde a questão está em discussão, o relator da matéria (Recurso Extraordinário 1017365), ministro Edson Fachin, deu seu voto em 9 de setembro de 2021, e afirmou que a teoria do marco temporal desconsidera a classificação dos direitos indígenas como fundamentais, ou seja, é uma das cláusulas pétreas que não podem ser suprimidas da Constituição.

Para ele, essa corrente de pensamento ignora que a legislação brasileira sobre a tutela da posse indígena estabeleceu, desde 1934, uma sequência da proteção nas Cartas Constitucionais e que agora, "num contexto de Estado democrático de direito, ganharam os índios novas garantias e condições de efetividade para o exercício de seus direitos territoriais, mas que não tiveram início apenas em 5 de outubro de 1988".

Os ataques aos direitos dos povos originários e ao meio ambiente ganharam forças nos últimos dias no Congresso Nacional. Na semana passada foram apresentadas emendas à Medida Provisória 1.154/2023, em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reorganiza a estrutura dos ministérios e de outros órgãos do Executivo. Com as emendas, parlamentares buscam esvaziar ministérios como do Meio Ambiente (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI), abrindo brechas para a grilagem de terras e facilitação de interesses do agronegócio na expansão de monoculturas.

Um dos argumentos dos defensores do marco temporal é que o instrumento pode diminuir a insegurança jurídica e conflitos em relação à demarcação de terras indígenas. Nesta terça-feira (29), o Ministério Público Federal reafirmou a inconstitucionalidade do PL 490, ressaltando a impossibilidade de modificar, por uma lei ordinária, o artigo 231 da Constituição, afrontando cláusula pétrea que "não pode ser objeto sequer de emenda constitucional".

Em Porto Velho (RO), lideranças de 30 povos protestaram, em um ato que fez parte da mobilização nacional contra a proposta. Eles se reuniram na entrada da cidade, na BR-364, sentido Cuiabá (MT). "Estamos aqui pela permanência da nossa vida, do nosso viver e dos nossos costumes. E o nosso direito de reivindicar hoje, para que nossos jovens e crianças possam continuar nossa luta. Então a gente repudia o que está acontecendo lá em Brasília. Estão decidindo algo que vai contra a nossa vida", afirmou Jefferson Macurape, membro do movimento da juventude indígena de Rondônia.

No Maranhão, o líder Kum'tum Akroá Gamella, do Conselho de Lideranças do seu povo, da aldeia Cajueiro-Piraí, Território Taquarituba, disse que a Constituição inaugurou um tempo de construção de outras relações que não ditatoriais, autoritárias e de repressão às liberdades, aos direitos sociais, ambientais e aos direitos fundamentais, mas não mudou a cabeça dos donos do poder e de quem roubou, invadiu, saqueou, matou". Ele afirma que são quase 35 anos do texto constitucional e continuam os ataques cotidianos aos povos indígenas.

"Nossas reivindicações não são de ordem patrimonial, mas do sentido existencial, de sobrevivência, moradia, terras tradicionais ocupadas por roças, onde estão bacurizeiros, açaizeiros, pequizeiros, terras de nossos ancestrais, terras com as quais mantemos vínculos afetivos necessários à reprodução da vida. De toda a teia da vida", afirma o líder do povo Akroá Gamella.

Kum'tum diz que desde 2017 esperam criar uma equipe multidisciplinar do território, por determinação do Conselho Distrital de Saúde Indígena, órgão colegiado para controle social de saúde, e não conseguem porque a terra não está demarcada. O mesmo acontece em relação à política escolar indígena.

Em meio às manifestações desta terça, outra liderança destacou a resistência da população indígena diante de invasões de territórios. "Muitos acham normal invadir nossos territórios, derramarem sangue dos nossos guerreiros, guerreiras e anciãos, mas nós estamos aqui para mostrar que estamos fortalecidos e que nem por isso vamos parar de lutar", afirma Puré Juma, do Amazonas.

No Médio Tapajós, a liderança Alessandra Korap Munduruku diz que os povos resistem a matanças e a casos de mulheres estupradas desde Cabral, em 1500, mas não conseguem conter os ataques do Congresso Nacional. Neste ano, Alessandra recebeu o prêmio Goldman de Meio Ambiente - considerado o Nobel do ambientalismo - por sua luta contra a mineradora Anglo American.

"Tudo o que assinam é contra nosso povo. É o momento de dizer: sai fora da nossa casa! Arthur Lira (presidente da Câmara e empresário do agronegócio) tem coração de ferro e age como se não tivesse filhos. A terra treme com os ataques. A seca vem, a enchente vem". Ela acusa de genocidas os parlamentares que apoiam o PL 490/2007. "São contra os rios, contra as florestas, querem o avanço do petróleo, das ferrovias, do agronegócio. Não podemos beber agrotóxicos".

A liderança Admilson Pavão, do povo Mura, participou de um protesto nesta terça-feira, junto com outras lideranças de seu povo. Ele é tuxaua da aldeia Urucurituba, no Amazonas, que pode ser uma das mais impactadas com o PL do marco temporal, pois o território não está demarcado e sofre forte pressão para exploração de potássio.

"O marco temporal é ruim para nós, pois isso somos contra. Não aceitaremos. Pode ser bom pros fazendeiros, pros mineradores. Isso só vem para acabar com nossos direitos, como nosso povo. É a morte dos indígenas. Com essa lei, a mineração só vai querer um pezinho para entrar em nossa terra", disse ele. "Mas nós vamos continuar lutando. A nossa terra tem cerca de 200 anos. Só a minha mãe, que tem 80 anos, sempre morou aqui. Então, aqui é terra indígena. Não vamos sair", disse ele.

Luana Kumaruara, do povo Kumaruara, define o PL 490 e a tese do Marco Temporal como um "instrumento de morte". "É a porta que o agronegócio, a mineração e o garimpo querem para tomar nossas terras. Este é um projeto que vai de encontro a qualquer ideia de sustentabilidade e de preservação da Amazônia", pontua Luana, que esteve no protesto que ocorreu em Belém (PA), na tarde desta terça-feira.

O protesto, que reuniu cerca de 400 pessoas, entre indígenas, quilombolas, estudantes e apoiadores, saiu da escadinha do Ver-O-Peso até a Praça da República, na Avenida Presidente Vargas, em Belém.

Angélisson Tenharim, presidente da Associação do Povo Morõgita, representando 11 aldeias no médio Madeira, no Amazonas, afirma que o Congresso tem sido arbitrário e irresponsável. "O PL 490 faz vista grossa sobre nossos direitos nesse solo sagrado chamado Brasil. É um projeto de negação de direitos. É uma agressão sem tamanha consequência. Traz morte. Os povos precisam moradia com qualidade alimentar e para continuar existindo. Uma política de extermínio. Antes matavam com bala, agora tentam através de leis, como o marco temporal. Nós vamos defender nossos territórios, ainda que seja com nossa própria vida", disse.

A justificativa do desenvolvimento econômico é histórica para os impactos sofridos pelos povos originários. A coordenadora da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas, Rosimere Arapasso, da região do Alto Rio Negro, diz que o dinheiro rápido da exploração de madeira e mineração está na base de diversas propostas legislativas. "Sem preocupação com consequências negativas para o meio ambiente e inclusive para povos em isolamento voluntário (assim chamados os que não têm contato com a sociedade envolvente), e também para os moradores das cidades.

"O PL 490 não impacta somente as comunidades indígenas, mas diretamente os quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e territórios demarcados e não demarcados. O ar limpo, a comida que vem das águas é porque alguém cuida. O homem ambicioso não pensa no bem-estar social, não pensa na vida e no planeta. Que futuro esperamos com esse Congresso irracional que está aí?", questiona Rosimeire. (Colaboraram Luciene Kaxinawá, de Porto Velho, Elaíze Farias, de Manaus, e Cícero Pedrosa Neto, de Belém).

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