Como os grileiros estão usando o cadastro ambiental rural no Vale do Javari para conseguir dinheiro

Valor Econômico, Brasil, p. A6. - 20/06/2022
Como os grileiros estão usando o cadastro ambiental rural no Vale do Javari para conseguir dinheiro
Cadastro mostra registro irregular de propriedades dentro da área demarcada como terra indígena

Camila Souza Ramos

20/06/2022

Além da pressão da pesca ilegal e do crime organizado, a terra indígena (TI) Vale do Javari, perto de onde foram mortos o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Philips, também sofre pressão de grileiros. De acordo com dados do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), há ao menos 14 mil hectares com cadastro ambiental rural (CAR) nos municípios de Atalaia do Norte e de Jutaí registrados dentro da TI.

A terra indígena Vale do Javari foi demarcada em 2000 e homologada em 2001. A área estende-se sobre Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Jutaí e São Paulo de Olivença. Desses quatro municípios, a maior parte das sobreposições ocorre em Jutaí, onde há quatro cadastros com 8.757 hectares realizados irregularmente.

Apenas dois desses cadastros em Jutaí respondem pela quase totalidade da área conflitante com a TI no município.

Os outros 5.419 hectares de sobreposição entre CAR e a terra indígena Vale do Javari estão todos em Atalaia do Norte. São 21 cadastros no município com conflito com a área demarcada, sendo que 12 deles estão totalmente dentro da TI.

Os outros nove cadastros estão parcialmente conflitantes com a TI, incluindo uma das maiores fazendas da região, de 670 mil hectares - dos quais 2,7 hectares foram cadastrados dentro da área demarcada aos indígenas.

A maioria dos registros do CAR que estão em conflito com a TI está suspensa por estar com toda sua extensão dentro da área demarcada. Mas também há cadastros com apenas parte de sua área conflitante com a terra indígena e que estão registrados como "pendentes" de avaliação.

"O que acontece no Vale do Javari é a ponta do iceberg", alertou Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

Atualmente, mais de 3 milhões de hectares de áreas com CAR foram registradas dentro de terras indígenas já demarcadas. Se somadas às sobreposições de CAR com unidades de conservação e com florestas públicas não destinadas, as sobreposições totais aproximam-se de 20 milhões de hectares - uma área do tamanho do Estado de São Paulo.

Segundo o pesquisador, esses casos mostram que grileiros vêm usando o CAR para legitimar a invasão de terras. "Com esse recurso [do CAR], eles levantam dinheiro com terceiros, às vezes até em banco, para ocupar terras públicas", diz.

Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), defende que a plataforma do CAR deveria impedir de antemão que alguém possa realizar um cadastro sobre terras indígenas. "Como os órgãos ambientais estão permitindo que se façam cadastros sobre áreas que deviam estar bloqueadas?", questiona a advogada.

Para Juliana Batista, quem realiza CAR sobre áreas demarcadas o faz com a expectativa de revisão futura da demarcação das terras indígenas e de legalização da invasão de terras públicas. "Bolsonaro entrou prometendo reduzir terras indígenas. Isso pode ter gerado uma expectativa nas pessoas", diz.

Ela lembra que projetos no Congresso que aumentam a data-limite para regularizar ocupações de terra, como o PL 21/2021, também pode estar estimulando a grilagem. "Tudo que o Bolsonaro fala e os PLs que o Congresso quer aprovar têm consequência imediata nas terras indígenas."

Segundo Moutinho, as áreas com sobreposição "não são necessariamente desmatadas, mas provavelmente serão desmatadas no futuro". Um estudo recente do Ipam mostrou que mais de 60% dos desmates ilegais em florestas pública e terras indígenas resultam em pasto.

Ele alerta que a conivência com a grilagem é uma "bomba relógio" de desmatamento para os próximos anos, que pode prejudicar inclusive o agronegócio.

"Vai furar o regador do país, porque quebra o fluxo de água que vem do Oceano para o continente, e os rios voadores deixam de voar", diz Moutinho.

Procurado, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) não se pronunciou até o fechamento desta edição.


Valor Econômico, 20/06/2022, Brasil, p. A6.

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