Empresas do ouro enriquecem, indígenas padecem

Le Monde Diplomatique Brasil - https://diplomatique.org.br/ - 03/11/2021
Empresas do ouro enriquecem, indígenas padecem

Ao contrário do que apregoa o discurso do governo federal, o garimpo ilegal praticado nas TIs não é atividade exclusiva de uma massa de homens pobres que enfrentam a floresta em busca de sobrevivência. É, na verdade, um empreendimento empresarial que envolve uma gama de atores altamente capitalizados

Edição 172 | Brasil
por Luísa Molina e Rodrigo Magalhães de Oliveira
3 de novembro de 2021

Em 12 de outubro, duas crianças indígenas que brincavam em um rio morreram afogadas porque nas cercanias operava - ilegalmente - uma draga de garimpo. O corpo de uma delas, levado pela correnteza, só foi encontrado dois dias depois. Cinco meses antes, outras duas crianças morreram da mesma forma após um ataque de garimpeiros em sua comunidade. Em julho, a vítima do garimpo ilegal foi um jovem indígena de 25 anos, que morreu atropelado por um avião que transportava garimpeiros.

Os episódios poderiam ter saído de um livro de ficção, mas ocorreram na Terra Indígena (TI) Yanomami, no nordeste de Roraima. Não são fatos isolados, apesar de inimagináveis: são evidências de um problema que nunca foi solucionado e tem crescido notavelmente nos últimos anos. A disposição do Estado brasileiro de enfrentá-lo, por outro lado, é cada vez menor. A despeito da gravidade dos danos que promove, a cadeia altamente ilegal e violenta de produção, compra e venda de ouro proveniente de TIs segue viva, sem nenhum controle e fiscalização.

O garimpo foi responsável pela disseminação de epidemias que, há três décadas, vitimaram cerca de 1.500 Yanomami, segundo consta na literatura especializada, e por um massacre que motivou a única condenação por crime de genocídio consumada no Brasil até hoje. Os efeitos dessas catástrofes ainda são sentidos entre os indígenas; no entanto, uma nova ofensiva de garimpeiros se alastra na TI Yanomami: estima-se que há, ali, 20 mil pessoas atuando ilegalmente na extração de ouro. O problema, longe de restringir-se àquela área, espalha-se pela Amazônia indígena de maneira acelerada, deixando um rastro de destruição sem precedentes.

Segundo dados das associações Hutukara e Wanasseduume Ye'kwana, em 2020 a exploração mineral promoveu o desmatamento de 2.400 hectares na TI Yanomami.1 Já um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais informa que, apenas em 2019 e 2020, garimpos ilegais foram responsáveis pelo desmatamento de 2.137 hectares na TI Kayapó e de 1.925 hectares na TI Munduruku.2

E não é apenas sobre a floresta que incide a devastação. Pesquisas recentes detectaram níveis alarmantes de mercúrio no sangue dos Munduruku e dos Yanomami. Entre os Munduruku do Médio Tapajós (município de Itaituba), nove em cada dez indígenas apresentaram níveis do metal acima do limite de segurança. No Alto Tapajós, onde a atividade é mais intensiva, apenas um dos Munduruku participantes da pesquisa não apresentou níveis de mercúrio acima do limite.3 Os dados foram coletados em 2019 pela Fiocruz. Entre os Yanomami, a situação também é assustadora. Segundo pesquisa realizada pela fundação em 2014, nas aldeias mais impactadas pelo garimpo, 92% da população apresentou níveis elevados do metal no sangue. A alta contaminação pode gerar graves danos neurológicos, imunológicos, digestivos e outros.

A proliferação de malária também é traço característico de áreas com forte atividade garimpeira; nelas são cavadas piscinas de água parada que fornecem o ambiente ideal para a reprodução do mosquito transmissor da doença (Anopheles). Ao longo de 2021, chegaram da TI Yanomami notícias chocantes de crianças com malária e desnutrição; algumas faleceram sem assistência de saúde adequada.4 Nos territórios Munduruku, a situação é igualmente preocupante: de 2018 para 2020, saltaram de 645 para 3.264 as notificações de infecção por malária.5

Nos últimos anos, proliferaram-se também os casos de violência de garimpeiros contra indígenas. Entre março e junho de 2021, a tensão nos territórios Munduruku atingiu patamares inéditos - culminando no incêndio provocado por garimpeiros na aldeia de Maria Leusa Kaba, liderança contrária à atividade. O caso dividiu o noticiário nacional com os ataques de garimpeiros a comunidades Yanomami como a de Palimiú, que se estenderam por semanas.

Ao contrário do que apregoa o discurso do governo federal, o garimpo ilegal praticado nas TIs não é atividade exclusiva de uma massa de homens pobres que enfrentam a floresta em busca de sobrevivência. É, na verdade, um empreendimento empresarial que envolve uma gama de atores altamente capitalizados. Para termos medida dos valores envolvidos mundialmente nessa atividade, a Financial Action Task Force mostra que a mineração ilegal de ouro e diamante é responsável pela geração de US$ 12 bilhões a US$ 48 bilhões por ano.6

Donos de garimpo têm, aliás, capital suficiente para comprar máquinas que chegam a custar R$ 1 milhão (dragas, pás carregadeiras e tratores de esteira) e para garantir o fornecimento contínuo de insumos de comercialização restrita imprescindíveis à extração do ouro, como mercúrio e cianeto.

Localizada em áreas remotas e de difícil acesso, a atividade garimpeira ilegal frequentemente conta com serviço de pilotos - que em determinadas regiões podem faturar até R$ 200 mil por semana7 - e de companhias de táxi aéreo. Essas empresas chegam, em certos casos, a participar diretamente da atividade, como revelou a Operação Ouro Frio, em Santarém e Itaituba (PA). Também realizada em Itaituba, a Operação Divitia 709 trouxe à tona o uso de helicópteros por grupos paramilitares encarregados de "escoltar" a entrada de garimpeiros e máquinas na TI Munduruku. Esses fatos dão a dimensão, entre outras coisas, do porte econômico dos atores que estão por trás da atividade. Aliás, a legislação segue enquadrando-a equivocadamente como "garimpo artesanal", estabelecendo assim uma série de facilidades para a obtenção de licenças minerárias e ambientais, que não se justificam e agravam a falta de controle sobre a extração.

Impulsionada pela alta do ouro, a intensa expansão do garimpo ilegal sobre terras indígenas tem sido facilitada por medidas administrativas do governo federal e incentivada, sistematicamente, por ministros de Estado e pelos próprios presidente e vice-presidente da República. Jair Bolsonaro nunca escondeu sua posição com relação à abertura das terras indígenas para exploração mineral intensiva e editou um projeto de lei a respeito do assunto, o PL n. 191/2020, enviado para o Congresso em fevereiro de 2020. Além disso, os gabinetes do Planalto têm se aberto ao lobby do garimpo e da mineração como em nenhum outro governo desde a redemocratização.8

Soma-se a esse panorama o enfraquecimento da fiscalização ambiental. Essas medidas revelam a operação de uma verdadeira agenda antiambiental por parte do governo: redução das fiscalizações e queda na aplicação de autos de infração; exoneração de servidores de carreira após fiscalizações bem-sucedidas; constrangimentos à destruição de maquinário utilizado na exploração ilegal (instrumento mais efetivo à disposição dos órgãos ambientais para a desarticulação e descapitalização das atividades ilegais); emprego das Forças Armadas nas ações de fiscalização em detrimento do Ibama, entre outras medidas.

No caso específico da TI Munduruku, vale lembrar que o MPF de Itaituba investiga diversos acontecimentos desse contexto de favorecimento do garimpo ilegal, ocorridos entre 2019 e 2021. Entre eles estão o vazamento de operações de fiscalização e a retirada súbita de apoio à operação por parte das Forças Armadas (circunstâncias que frustraram o resultado das ações); a utilização de aeronaves da Força Aérea Brasileira para transportar garimpeiros até Brasília; e até mesmo o estímulo à garimpagem no território por parte do coordenador da Funai na região do Tapajós.

No entanto, não é apenas "na ponta" que a exploração ilegal de ouro tem contado com a generosidade do Estado. Após ser extraído ilegalmente de áreas protegidas, o ouro precisa ter sua origem ilegal ocultada para ingressar no mercado formal. Esse esquema de "lavagem" (chamado também de "esquentamento") se dá ao vincular o ouro a uma autorização minerária que não corresponde ao local real de extração. Os compradores de ouro ilegal operam em um ambiente de baixíssimo risco e altíssima lucratividade, sem nenhuma fiscalização do poder público e com uma legislação que facilita fraudes.

Segundo a legislação brasileira, o ouro extraído em garimpo tem natureza de "ativo financeiro" e deve ser comprado, inicialmente, apenas por instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central, chamadas de Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs). Conforme informação fornecida pelo Bacen via Lei de Acesso à Informação, atualmente há apenas oito DTVMs com Postos de Compra de Ouro (PCOs) em atividade no Brasil. A maior instituição do ramo, chamada FD'Gold DTVM, possui mais de um terço dos PCOs ativos no país: são 31 dos 91 postos registrados. Trata-se, portanto, de um cenário de aguda concentração.

Diversas investigações demonstram a centralidade das DTVMs no processo de lavagem e de introdução de ouro ilegal no mercado. A Operação Dilema de Midas, por exemplo, mostrou como o PCO da Ourominas DTVM em Santarém atuava diretamente na dissimulação da origem do ouro que adquiria. Segundo apontaram as investigações, em 2015 e 2016 todo o ouro comprado no posto era ilegal. Em resposta, a Justiça Federal determinou a suspensão das atividades do PCO de Santarém em 2018.

Segundo o MPF, entre 2019 e 2020 a Ourominas teria comprado ao menos 1.080,51 kg de ouro ilegal. Outras empresas do ramo tiveram movimentações semelhantes no período: a Carol DTVM adquiriu 1.918,50 kg do metal de origem ilícita; e a FD'Gold, 1.370 kg. Os danos socioambientais promovidos por essa atividade são estimados em R$ 10,6 bilhões. Essas empresas figuram entre as maiores compradoras de ouro do país, considerando o volume de imposto recolhido.9 Em agosto deste ano, elas foram alvo de um pedido do MPF à Justiça Federal de suspensão de suas atividades.

Segundo as operações Xawara, Warari Koxi e Tori, da Polícia Federal e do MPF, as empresas Ourominas, Carol e FD'Gold, junto com a Coluna DTVM e a Dillon DTVM, estariam envolvidas na compra do ouro ilegal da Terra Indígena Yanomami.10 Trata-se de cinco das oito instituições financeiras com PCOs ativos no país, conforme declara o Bacen. Outra importante constatação da Operação Tori foi que parte do ouro extraído no território Yanomami é comercializada em Itaituba.

Segundo o estudo da UFMG, Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso responderam por 85,7% do comércio de ouro clandestino em 2019 e 2020. Esses municípios também reúnem, junto com os do norte de Mato Grosso, a maior quantidade de autorizações minerárias para garimpo no país - localizadas sobretudo na Reserva Garimpeira do Tapajós. Itaituba possui impressionantes 23 PCOs. É, com folga, a cidade recordista do país. Em contraste, todo o estado de Roraima (onde se situa a TI Yanomami) não possui nenhuma autorização de exploração garimpeira ou PCO. Mas note-se bem: a legislação brasileira determina que os PCOs só podem comprar ouro extraído na mesma província geológica onde estão sediados. Ou seja, parte do ouro extraído na TI Yanomami, por exemplo, é vendido em Itaituba e "lavado" com a indicação de autorizações minerárias existentes na região - conforme revelou a própria Operação Tori.

Com isso, a concentração do comércio clandestino em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso não significa que o ouro ilegal seja integralmente extraído nesses municípios - mesmo porque há outras regiões na Amazônia com intensa exploração ilegal de ouro, como as TIs Yanomami e Kayapó. Os dados citados alimentam a hipótese de que esses municípios, em especial Itaituba, constituem não só um polo de extração ilegal, mas também de lavagem e compra do ouro explorado em áreas protegidas de outras regiões da Amazônia.

Além do monopólio de compradores de ouro, as autorizações minerárias utilizadas na lavagem do ouro ilegal estão concentradas na mão de apenas seis detentores, conforme apontou o estudo da UFMG. No Pará e em Mato Grosso, estados que concentram 94% das autorizações minerárias para garimpo no país, a comercialização de ouro ilegal e potencialmente ilegal superou a do ouro de origem lícita em 2019 e 2020, ainda segundo o estudo da UFMG. No mesmo período, o Pará produziu 30,4 toneladas de ouro, das quais ao menos 22,5 toneladas (74%) foram extraídas de maneira irregular.11 A extração ilegal de ouro não é, portanto, pontual.

O que o Estado brasileiro, ciente desse cenário de ilegalidade generalizada, faz para revertê-lo? Qual é a dificuldade em fiscalizar um mercado tão monopolizado? Ao longo da última década, diversas fragilidades institucionais e regulatórias do comércio de ouro foram expostas por operações da PF e do MPF - Xawara, Minamata, Warari Koxi, Crisol, Elemento 79, Dilema de Midas, Levigação, Tori, Ouro Frio e Bezerro de Ouro, entre outras. Essas revelações contrastam com a ausência de avanço (e até mesmo retrocesso) institucional no combate à ilegalidade na cadeia econômica do ouro.

Apesar dos sucessivos escândalos, a extração e o comércio de ouro seguem com fragilidades regulatórias e fiscalizatórias que podem ser caracterizadas como grosseiras. As notas fiscais de aquisição desse metal não são digitais: ainda são preenchidas com caneta e papel carbono, favorecendo fraudes e dificultando a fiscalização ao inviabilizarem o cruzamento de dados em tempo real. Não há um sistema público informatizado que concentre informações e faça o controle da extração e das transações do ouro extraído em garimpo (rastreabilidade), de modo que não se tem nenhuma transparência na cadeia de custódia do ouro.

Esse fato inviabiliza por completo qualquer tipo de certificação do ouro. Não há como consumidores intermediários (como joalherias e indústrias de tecnologia) e finais praticarem um consumo minimamente responsável. Dada a proporção da ilegalidade, pode-se afirmar com segurança que esses consumidores estão comprando elevadas quantidades de ouro ilegal e alimentando uma cadeia econômica intensamente predatória para os povos indígenas e para a Amazônia, ainda que não estejam necessariamente implicados no cometimento das fraudes.

A legislação que rege a matéria, por sua vez, propicia fraudes e estabelece favorecimentos injustificáveis às instituições financeiras compradoras de ouro. Aprovada graças ao lobby da Associação Nacional do Ouro12 (entidade que representa as DTVMs e outros atores da cadeia econômica), a Lei n. 12.844/2013 estabelece uma presunção de legalidade do ouro adquirido e de boa-fé do comprador. Na prática, a legislação autoriza a vista grossa deliberada por parte das DTVMs, permitindo que comprem, com "segurança jurídica", ouro oriundo de uma atividade completamente dominada pela ilegalidade e dispensando-as de adotar procedimentos básicos para verificação de origem. A regra destoa do protagonismo das DTVMs no processo de esquentamento do ouro ilegal, tal como demonstrou a Operação Dilema de Midas.

Enquanto mata, adoece, empobrece e desterritorializa os povos indígenas na Amazônia brasileira, o garimpo ilegal de ouro movimenta um mercado bilionário e altamente monopolizado: donos de garimpo, vendedoras de maquinário, instituições financeiras (DTVMs), empresas de refino e fundição, transportadoras e custodiadoras especializadas, exportadoras, joalherias, investidores e a indústria de tecnologia enriquecem à custa da devastação das terras e das vidas indígenas, aos olhos omissos ou coniventes do Estado. Mesmo com a difusão de informações que revelam o caráter predominantemente ilegal da atividade garimpeira, os principais importadores do ouro brasileiro, na Europa e América do Norte, tampouco parecem preocupados com essa realidade. Os Munduruku, Kayapó e Yanomami vivenciam uma realidade de guerra, ao passo que o Estado e os atores privados sugerem, perversamente, a legalização da atividade nas terras indígenas e a autorregulação do setor.

*Rodrigo Magalhães de Oliveira é assessor jurídico do Instituto Socioambiental e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília, e desenvolve pesquisa junto ao povo Munduruku; Luísa Molina é doutoranda em Antropologia pela Universidade de Brasília, com pesquisa entre os Munduruku do Médio Tapajós.

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Mineração em Terras Indígenas

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