"Voltar para ir": obra fala de retomada indígena

UOL/Ecoa - https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julie-dorrico/ - 02/02/2022
"Voltar para ir": obra fala de retomada indígena

Julie Dorrico
02/02/2002

A escritora Débora Arruda pertence ao povo Aranã, que se localiza no estado de Minas Gerais, no bioma cerrado. Natural de Aracaju (Sergipe), é escritora, poeta, performer, atriz e pesquisadora dos estudos de performance. É formada em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo, e atualmente é mestranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação na mesma instituição. "Voltar para ir" é uma expressão poética da retomada do sujeito, do povo, da subjetividade e identidade Aranã.
O que é a retomada indígena?
Na literatura antropológica dá-se o nome de etnogênese ao reconhecimento oficial de etnias/povos/nações que foram dadas como extintas pelo Estado-nação. Aqueles povos que conseguem o reconhecimento oficial pelas agências que trabalham com tais etnias no Brasil geralmente são intitulados de autodeclarados.
O povo Aranã é de etnogênese. Foi dado como extinto ainda no século 19, e só reconhecido no final da década de 1990. Mesmo assim, sempre foram identificados pelas identidades genéricas de "índio" e "caboco" na região do Vale de Jequitinhonha. Para saber mais sobre a nomenclatura que sugerimos adotar para se referir a sujeitos e povos indígenas, clique aqui: A teoria e a literatura indígena na educação: outras formas de nomear - 17/03/2021 - UOL ECOA. Para saber mais sobre o histórico do povo Aranã apresentado pelo Instituto Socioambiental, clique aqui: Aranã - Povos Indígenas no Brasil (socioambiental.org).
Quando um grupo étnico é dado como extinto, todos os sujeitos que a ele pertencem têm sua identidade étnica negada. É um longo processo até o imaginário nacional acostumar-se com o fato de a identidade indígena persistir. Os povos que não são considerados de etnogênese, isto é, nunca foram declarados extintos pelo país, têm a dura tarefa de informar que não foram subsumidos pela política de integração nacional. Os povos que foram apagados da história oficial têm a difícil tarefa de informar que não são seres extintos, do passado ou oportunistas.
Nesse sentido, para nós, indígenas, o termo autodeclaração ou autodefinição, que é um adjetivo utilizado para se referir a esse processo de etnogênese, irrompe uma série de equívocos e violência simbólica. A nível de povo, o artigo "Existência e diferença: o racismo contra os povos indígenas" (2019), de autoria coletiva indígena e não indígena, explica que para o povo Kum Tum Akroá Gamela há um incômodo nessa interpelação:
"Nas reuniões da FUNAI, o nosso povo continua sendo descrito - mesmo após anos e anos de luta - como 'autodenominados'. Isso até pode parecer, num primeiro momento, que eles estão resguardando o nosso direito à autodefinição. Só que uma coisa é o momento inicial da autodefinição. Beleza. A questão é por que se continua, depois de anos, a repetir 'os autodenominados', 'os autodenominados'... Toda vez que a gente ouve isso, eu tenho essa sensação que a gente é diminuído; que a palavra é para diminuir a gente e colocar numa segunda categoria: tem os indígenas, e tem os que 'se autodenominam' indígenas".
Tanto para povos quanto para indivíduos, os sujeitos indígenas têm denominado cada vez mais esse processo de reconhecimento e afirmação da identidade étnica como "retomada". Em nível individual, diz respeito a indivíduos que impactados pela literatura, cinema, artes, música indígenas, têm reconhecido sua ancestralidade e passado a comunicar-se com o povo de origem ao qual pertencem.
A literatura indígena de Débora Arruda é uma expressão da retomada do povo Aranã e metonímia para a retomada de muitos sujeitos que não se identificam com a memória dominante com que foram por séculos ensinadas a se identificar, isto é, a brasileira, de origem europeia. Isto porque reconhecemos que os processos pelos quais se constitui a identidade nacional passa pela exclusão dos corpos indígenas, ao mesmo tempo que apropriação dos conhecimentos ancestrais. Em ambos os casos, nos subordina ao empobrecimento territorial e simbólico.
A literatura indígena tem cumprido para além da função didática de informar a sociedade envolvente da existência e diferença cultural dos povos indígenas, o orgulho do pertencimento étnico, o orgulho de ser indígena. A seguir compartilho um poema de Débora Arruda que, em minha opinião, pulsa ancestralidade:
ponho as miçangas na linha
para o preparo do meu colar
brancas e marrons, as pedrinhas
contam histórias
sem que a boca precise falar
sequências de cores e traços
começam a se formar
olho para trás e agradeço
por mainha deitada na rede
me ensinando a costurar
o saber é variado
o aprendizado, também
e o conhecimento que nos foi tirado
se agarra em nossa ancestralidade
e vem.
Perfil no Museu do Índio
Débora Arruda e sua obra "Voltar para ir" estão presentes na I Mostra de Literatura Indígena na plataforma virtual do Museu do Índio. Para acessar seu perfil, do povo e mais um excerto da obra, clique aqui: Bioma Cerrado | Museu do Índio UFU (musindioufu.org).
Para adquirir a obra na editora Impressões de Minas: https://impressoesdeminas.com.br/produto/voltar-para-ir/


https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julie-dorrico/2022/02/02/voltar-para-ir-obra-fala-de-retomada-indigena.htm
PIB:Leste

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