A remoção forçada do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe

Caci - http://caci.rosaluxspba.org - 11/10/2016
A partir de arquivos de reportagens, registros oficiais de discursos e decisões parlamentares, além de informes de órgãos estatais, é possível recuperar parte significativa da história da remoção forçada do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe de suas terras no sudoeste da Bahia. Hoje, o Estado Brasileiro já reconhece o direito de tais indígenas a 54.105 hectares, parte reduzida da área em que viviam originalmente. O trecho reservado como terra indígena Caramaru/Paraguassu, que pode ser observado em amarelo no mapa ao lado, foi "encaminhado como reserva indígena", ou seja, conforme a Funai indica, ainda está "em procedimento administrativo visando sua aquisição (compra direta, desapropriação ou doação)".

A demora em garantir a área, ainda que mínima, para os Pataxó é só mais um capítulo da história de desestruturação social da comunidade, fator diretamente relacionado à violência que culminou em pelo menos 13 assassinatos registrados recentemente em relatórios do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os casos incluem disputas internas por poder, violência doméstica e mortes não esclarecidas pela polícia; clique nos marcadores ao lado para ler detalhes sobre cada um deles.

Os documentos históricos reunidos neste dossiê permitem não só identificar a dimensão da remoção forçada, como também os atores e responsáveis por um processo violento marcado por coerção e tutela. A recuperação de informações serve também de base para tentar chamar a atenção para a gravidade da lentidão no processo de regularização da reserva, bem como definir parâmetros para reparação das violências cometidas, incluindo indenizações às vítimas.


Arrentamento e doações


Os primeiros registros de violências na região são da primeira metade do século passado, quando ataques de fazendeiros auxiliados por forças policiais resultaram, conforme registrado em Boletim Jurídico da Comissão Pró-Índio de 1983, em uma chacina de indígenas. O episódio é o início da perseguição desenfreada que se agrava durante a Ditadura, quando as terras em que viviam os indígenas são doadas ou arrendadas.

A política de ocupação de áreas já ocupadas está diretamente relacionada à disputa fundiária que afeta até hoje os Pataxó. A estratégia de arrendamentos foi marcada por fraudes e resultou em desvio de recursos e áreas públicas, conforme apontam os documentos. O Informativo FUNAI No 17, de 1976, por exemplo, ajuda a identificar a discrepância entre os valores pagos à Funai pelo arrentamento e o real valor das terras na época. Conforme detalhado na página 37 do documento, pelas terras indígenas localizadas em Itaju da Colônia, avaliadas em 460,00 cruzeiros por hectare em 1972, os fazendeiros pagavam apenas 0,10 cruzeiros por hectare, ou 0,02% do valor real. Os recursos deveriam ser pagos à Funai, e beneficiar os habitantes originais.

Na prática, porém, as condições de sobrevivência do povo se agravaram. Em uma das áreas onde os Pataxó Hã-Hã-Hãe viviam, de 36 mil hectares ocupados nada menos do que 35.997 hectares foram arrendados, restando aos indígenas apenas três hectares (área reduzida equivalente a 30 mil metros quadrados, ou quatro vezes o gramado da Arena Corinthians). A desequilibrada redistribuição das terras beneficiou 604 fazendeiros, que pagaram no ano de 1976 somente três mil e seiscentos cruzeiros pela terra arrendada. Considerando o valor real avaliado em 1972, eles teriam que ter pago dezesseis milhões e quinhentos e sessenta mil cruzeiros, ou seja, 4.600 vezes mais.

A cobiça em relação às terras está relacionada ao fato de serem áreas consideradas férteis. Os fazendeiros que se apropriaram das terras indígenas não eram camponeses, mas sim parte de um grupo econômico com influência e representação no Congresso Nacional. Defendendo os invasores em discurso proferido na Câmara dos Deputados em 1976, o deputado federal Henrique Brito (ARENA-BA) afirmou que na área total da reserva já havia mais "500 mil cabeças de gado e milhares de arrobas de cacau", e, ao insistir que o governo deveria apoiar os agricultores, argumentou, ignorando a presença dos Pataxó, que "não existem mais índios naquelas terras".

Também em defesa dos fazendeiros, um ano antes, em 19 de junho de 1975, outro parlamentar, o deputado federal Henrique Cardoso (MDB-BA) já havia encaminhado requerimento à mesa da Câmara dos Deputados. Com o mesmo argumento de que na região já não havia índios, o parlamentar já esboçava a estratégia de tomada definitiva das terras dos Pataxó Hã-Hã-Hãe e o registro destas para aqueles que as arrendavam:

"Concluindo, requeremos: que a Funai provoque junto ao poder Executivo a extinção dos "Postos Caramuru e Paraguaçu", revertendo a área para o domínio da União; que a União doe ao Estado da Bahia a gleba que compõe os "Postos Caramuru e Paraguaçu", e que na doação se assegure aos posseiros o direito de preferência para a aquisição direta ao Estado da Bahia das áreas ocupadas".


Coerção, remoção forçada e violência


Além de acabarem confinados em diminuta área e dispersos em fazendas, onde passaram a trabalhar como empregados dos novos latifundiários, os indígenas locais sofreram também violências diretas que desestabilizaram ainda mais sua estrutura social. As lideranças que se rebelaram foram levadas presas ao Reformatório Agrícola Krenak e, depois de 1972, à Fazenda Guarani, centros de detenção de indígenas da Ditadura localizados em Minas Gerais. Não faltam registros de tais prisões. A edição número 23 do Jornal Porantim, de outubro de 1980, por exemplo, registra que "em julho foram transferidos 41 Pataxó do Posto Indígena de Caramuru, de Itajú do Colônia (BA), despachados para a prisão Guarani a fim de deixar livre aos fazendeiros a ocupação da área indígena".

A ação coordenada de diferentes representes do Estado, fazendeiros e pecuaristas consolidou um projeto de desenvolvimento regional marcado por coerção, remoção forçada e violência; cabe destacar que o Krenak é considerado hoje um campo de concentração e centro de tortura da Ditadura. A desestruturação do povo e os ataques diretos e indiretos sofridos estão bem documentados. Em 1976, na página 38 do Informativo FUNAI No 17, a situação é descrita da seguinte forma:

"Os atritos na região têm sido constantes. Os índios recusam-se a abandonar as terras enfrentando pressões para o fazerem, inclusive com assassinatos, e, com prisões, em 1ª, no Crenak, daqueles que resolvem enfrentar a situação. Outros, porém, preferem abrir mão das terras a que têm direito, indo empregar-se com os arrendatários em troca de roupa e comida. As mulheres são forçadas a prostituírem-se em bordéis de estrada. A dispersão do grupo, atualmente, é acentuada, havendo três índios na sede do Posto, e cerca de 300 índios nos municípios vizinhos".

Apesar de haver relatos e documentos da época que comprovam que não foram poucos os indígenas presos em Minas Gerais, os registros oficiais se resumem a 11 casos. A subnotificação de detenções era comum, conforme revelou à Comissão Nacional da Verdade, o então chefe da Ajudância Minas Bahia da Funai, João Geraldo Itatuitim Ruas. Considerado um dos primeiros servidores de origem indígena do Brasil, ele assumiu o comando da Ajudância no lugar do militar Capitão Pinheiro. Inconformado com a situação que encontrou nos centros de detenção, fez denúncias e procurou superiores, sem sucesso (a reportagem "Um campo de concentração indígena a 200 quilômetros de Belo Horizonte (MG)," publicada em 2013 pela Pública, conta mais sobre o episódio). Seu depoimento à CNV ajudou a identificar a dimensão e a gravidade do que aconteceu na região.

Na lista de detenções oficial, recuperada pelo pesquisador José Gabriel Silveira Corrêa a partir de documentos do Museu do Índio, figuram 11 indígenas Pataxó, sendo 3 deles detidos por "atritos com o chefe do posto". São casos como o de Samado Bispo dos Santos, que acabou recolhido em 1970 e preso outra vez em 1983 por defender os direitos territoriais de seu povo, conforme denunciou em discurso na Câmara dos Deputados, o deputado Mário Juruna (PDT-BA).


Responsabilidade pública


A participação e responsabilidade de funcionários públicos no esbulho de renda e terras dos Pataxó também está documentada e envolve representantes de diferentes poderes em vários níveis e momentos distintos. Em um contexto de graves conflitos fundiários, incluindo casos de pistolagem (detalhados no Jornal Porantim no 94 de dezembro de 1986), os documentos apontam ação coordenada entre o Executivo e Legislativo baianos, seus representantes no Legislativo Federal, dirigentes e servidores do Executivo Federal, o Judiciário e Forças de Segurança. Tudo com o objetivo de legalizar a expulsão dos índios e garantir a tomada das terras Caramaru/Paraguassu.

Em depoimento ao Relatório Figueiredo, informe de mais de 7 000 páginas produzido em 1967 pelo procurador Jader de Figueiredo Correia sobre violações contra indígenas, o agente indígena Helio Jorge Bucker, que atuou como chefe de diferentes postos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), assim detalha a expulsão dos Pataxó:

"(...) que esses esbulhos ocorreu ao tempo em que era interventor no Estado da Bahia o senhor JURACY MAGALHÃES sendo Chefe de Polícia o General LIBERATO DE CARVALHO um dos principais beneficiados pelo esbulho, juntamente com o ex-Ministro MANUEL NOVAES; que a área de que se beneficiou o General LIBERATO DE CARVALHO eram de 6 mil tarefas a fóra áreas consignadas a prepostos seus; que outras áreas eram consignadas a prepostos de JURACY MAGALHÃES; que não houve propriamente um esbulho, mas, sim, um verdadeiro genocídio através da contaminação da tribo PATAXÓ do vírus da varíola; que a reserva indígena ficou desabitada porque restou apenas uma meia dúzia de selvícolas (...)" - páginas 3784-3785 do Relatório.

Ele conta ainda que chegou a comunicar as violações ao seu chefe, o major-aviador Luis Vinhas Neves, diretor do SIP, sem renhum resultado. Neves teve papel ativo nos contratos de arrendamentamento realizados a partir de 1965 de terras indígenas na região e em outros episódios bastante graves; no caso da distribuição de roupas infectadas com varíola que dizímou pelo menos duas aldeias inteiras no sul da Bahia, o autor da denúncia registrou a tentativa de denunciar o caso:

"(...) que o depoente comunicou ao Major VINHAS NEVES das atrocidades e das negociadas praticadas pelos funcionários da IR-6 mas aquele diretor declarou 'desenterrar defuntos nem criar mais áreas de atrito'; que o Major VINHAS possuia todos os processos a esse respeito e não tomou providências porque não quis".

Após a expulsão e desestruturação das comunidades, no Legislativo vieram os esforços para garantir a regularização das terras indígenas invadidas por latifundiários. Em 1981, o deputado federal Fernando Gomes (PMDB-BA) fez discurso defendendo que não deveria nem ser reconhecida a reserva indígena pleiteada, mesmo esta sendo área reduzida em relação à que o povo originalmente ocupava. Em seu discurso, ele citou o seguinte parecer do Setor da Regularização de Terras da FUNAI para justificar a consolidação da expulsão dos Pataxós:

"Não há, assim, terra indígena a reclamar como de domínio dos Pataxós no Estado da Bahia, sendo válidos e legítimos os títulos de propriedade expedidos pelo Estado em favor dos ocupantes que hoje são titulares do domínio pleno das glebas que possuem, não podendo ser aceita a denominação de 'Reserva Indígena Paraguassu' à área localizada nos municípios de Camaeã, Pau Brasil, Itaju do Colonia, no Estado da Bahia, em virtude de inexistir ato que assim a denomine".

Por ficar evidente de maneira cabal a ação orquestrada entre diferentes agentes públicos, o episódio da expulsão dos Pataxó é um dos casos que pode ser objeto de trabalho da Comissão Nacional Indígena da Verdade, recomendada pela Comissão Nacional da Verdade ao Estado Brasileiro, parte das medidas de reparação e justiça transicional previstas.


Sob tutela


Vale ressaltar também que, na época em que os contratos de arrendamento foram firmados pelo Estado, os indígenas da Bahia e de todo o Brasil viviam sob regime de tutela. O procurador Carlos Eduardo Raddatz Cruz, do Ministério Público Federal, tratou do tema ao apresentar um recurso sobre a aplicação do marco temporal nas terras do povo Guarani em Mato Preto no Rio Grande do Sul.

O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), a sua vez, manteve inalterada a incapacidade relativa, a tutela e a atribuição ao órgão federal de assistência ao índio à "defesa judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das comunidades indígenas".

Somente com a Constituição Federal de 1988, surge o ideário de superação política integracionista e de uma visão de respeito à cultura indígena, quando então o regime de tutela indígena passa a ser repensado.

Em síntese, o regime jurídico tutelar indígena do último século restringiu sobremaneira a autonomia de vontade dessas populações, de modo que a satisfação de qualquer interesse ou direito frente a particulares ou ao Estado pressupunha invariavelmente a intermediação do representante legal, inicialmente vinculado ao SPI e depois à Funai, órgãos sobre os quais, por muito tempo, pairou uma nuvem negra carregada de atrocidades perpetradas justamente contra aqueles a quem deviam proteção, como visto no tópico anterior.

O Estado brasileiro, ao firmar contratos lesivos aos interesses de seus tutelados, e promover ou acobertar por ação e omissão várias violências e procedimentos ilegais, violou convenções internacionais. A remoção forçada do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, cujo resultado foi a desestabilização da etnia, esbulho das terras e riquezas naturais, feriu o Decreto no 58.824. de 14 de julho de 1966, que internalizou no sistema jurídico brasileiro a Convenção no 107. Adotada em Genebra, a 26 de julho de 1957, tal tratado prevê a proteção e integração das populações indígenas.

O Brasil também é signatário da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que em seu artigo 8, item 2-c determina que "os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a prevenção e a reparação de toda forma de transferência forçada de população que tenha por objetivo ou consequencia a violação ou a diminuição de qualquer dos seus direitos".


Base para reparação


A reunião de documentos e registros do valor das transações de arrendamento das terras em questão permite traçar parâmetros para ações de reparação. O Grupo Tortura Nunca Mais-SP e a Comissão Justiça Paz da Arquidiocese de São Paulo, organizações da qual o autor deste levantamento faz parte, encaminharão ao Ministério Público Federal arquivos e informações com o objetivo de auxiliar as autoridades na identificação de responsabilidades e encaminhamentos.

Os dados sobre os valores de arrendamento, por exemplo, podem ser atualizados com a calculadora do Banco Central, o que permite comparar a diferença entre o valor estimado e o que foi realmente pago na política de arrendamento promovida pelo Estado-tutor.

Considerando os valores da década de 1970, mencionados no começo deste texto, por exemplo, é possível estimar que o valor de arrendamento por hectare a ser pago na época deveria ser o equivalente a R$ 1.816,41 (ou os 460,00 cruzeiros por hectare, conforme avaliado na reportagem de 1972), quando, na realidade, o que foi pago foi o equivalente a R$ 0,17 (ou os 0,10 cruzeiros por hectare pago em 1976).

Ou seja, em 36 mil hectares considerados, o valor a ser pago deveria ter sido de R$ 65,3 milhões, quando, o valor real foi de R$ 6,19 mil. Considerado como referência apenas cinco anos, de 1972 a 1976, o valor de arrendamento que deveria ser pago pelos fazendeiros de Itajú da Colônia seria de R$ 326,8 milhões, montante que teria de ser recolhido pelo Estado e revertido em renda indígena. Tal estimativa serve como uma base, que pode ser complementada e ampliada com mais registros dos períodos entre 1947 e 1971 e entre 1976 até os dias de hoje.

Experiências de outros países, que buscaram reparar violações históricas, podem ajudar a estabelecer metodologias e referências para os processos de reparação. As indenizações pelas violações do nazismo na Alemanha e as condenações por crimes cometidos por ditaduras em outros países podem servir de inspiração para a Justiça brasileira. Junto com demarcar as terras indígenas, o Estado em todas as suas esferas precisa também indenizar e reparar os crimes históricos cometidos contra povos indígenas no Brasil. O esbulho da terra mediante a remoção forçada e o desvio da renda devida aos Pataxó Hãe-Hãe-Hãe é uma dívida do Estado.



http://caci.rosaluxspba.org/#!/dossie/910/?loc=-15.366798091311546,-39.73136901855469,12
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