O controverso caso da uma índia Hixkaryana diagnosticada com bipolaridade

Amazônia Real (Manaus - AM) - www.amazoniareal.com.br - 27/07/2015
Allen Ginsberg, em "O Uivo", escreveu que tinha visto inúmeras almas de sua geração destruídas pela loucura, histéricas e nuas, procurando heroína para tomar no café da manhã. Da mesma forma - guardadas as evidentes proporções espaço-temporais - nas observações de campo para estudo que publiquei ano passado (leia mais aqui), com financiamento internacional do Programa Santander/Espanha, foi notada a queda humana traduzida nas ruas de Parintins, Nhamundá e Barreirinha, territórios de extrema da divisa amazonense com o Pará.

Dentre alguns casos aos quais tive acesso, um deles me levou a crer fortemente que angústias oriundas de doenças psíquicas entre povos indígenas não parecem ser só prisões construídas pela amargura de remédios sintéticos ministrados, mas em determinado grau por exterioridades cuja migração aldeia-cidade tem forçado na referida fronteira amazônica. Segue relato para se exemplificar a problemática, extraído do livro "Sofrimento Mental de Indígenas da Amazônia", disponível na plataforma Open Journal System da web.

Em dezembro de 2008, numa manhã de sábado, compareceu à Casa de Saúde Indígena (CASAI) de Parintins uma mulher com mais de 40 anos na época, da etnia Hixkaryana. Naquele mês, completavam-se 12 anos desde a primeira crise de depressão profunda e tremores noturnos acompanhados de alucinações de perseguição por onça e mapinguari (macaco gigante da mitologia amazônica). Acompanhada pelo marido, um tanto mais velho e também indígena da TI Nhamundá-Mapuera, e mais um intérprete pouco comunicativo porque só compreendia um conjunto reduzido de palavras em português, a paciente foi diagnosticada com distúrbio afetivo bipolar e distúrbio esquizoafetivo do tipo maníaco.

Comunicando-se na língua materna dos Hixkaryana, pertencente à família linguística Karib, ela foi trazida de sua terra indígena para atendimento na cidade de Parintins porque estava sofrendo de comportamentos bizarros, com visões de animais selvagens, e por isso não dormia; chorava sem motivo aparente e costumava a vagar completamente nua e se insinuar a homens da aldeia, além de comer coisas como barro, terra ou pedra. A mulher não conseguia fazer o trato doméstico do local onde morava porque não se concentrava em tarefas simples e vivia esquecida das memórias de jovem e fraca do corpo.

Para convencer ao companheiro da paciente indígena a ministrar a ela doses diárias de Lítio-300, o tradutor confirmou, segundo orientação médica, que ela poderia trabalhar em afazeres domésticos leves, ajudando no dia a dia da morada comunitária, e assim todos na aldeia conseguiriam dormir mais e melhor a partir da medicação, já que a insônia da mulher impossibilitava a quietude do ambiente, com choros e gritos prolongados. O tratamento foi fixado na mesma proporção dos últimos anos, desde quando começaram as crises. O que mudava era a inclusão de mais dois remédios, haldol e neozine.

A indígena, típica migrante dos tempos atuais - não sei ao certo se por uso prolongado da medicação - desenvolveu tempos depois prejuízo da memória para eventos recentes, distorções fundamentais de pensamento e percepção, bem como afetos inapropriados e embotados do cotidiano, o que gerava comprometimento grave do seu juízo crítico da realidade. Em suma, o exemplo, coletado a partir de registros públicos do sistema de saúde de Parintins, indica descrição da pessoa indígena em estado de desordem de julgamento via registro médico de classificação embasada no manuais Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV e V (DSM). O que é, obviamente, bem diferente da construção da pessoa indígena apoiada em evidências estabelecidas via estudos etnológicos ou psicossociais com viés cultural.

O caso sugere que a construção da plenitude dos étnicos, no sentido do bem-estar físico e mental, é algo complexo. O que foi especificado é uma proposta de exemplo da situação de leniência no quadro de ações interdisciplinares que expliquem a pessoa indígena e apresentem interpretações para o estabelecimento crônico de transtornos mentais entre os Hixkaryana do Baixo Amazonas. No tratamento, figurou a manutenção da atenção clínica dentro de uma vivência adotada como padrão de sociedade urbana para aldeias, a qual faz com que sentidos tradicionais de mundo sejam levados a se construir em moldes urbanos fragmentados.

Para a índia acometida por sofrimento mental, no caso em relato, observou-se que a existência passou a ser uma aventura insalubre da contemporaneidade, perplexa de incompreensões em um cenário de perda, dor e infelicidade. Esse cenário, em parte, adveio da noção medicamentosa da biomedicina, que instituíra, para ela, ato defensivo e passivo como ação ante a situação ansiógena e depressiva, conforme se pode concluir na pesquisa. E ainda. Sobre a exaustão psicofísica da Hixkaryana cujo relato se teve acesso, não me vem, neste momento, paralelo acadêmico ao qual relacione-se sua doença dentro dos contextos da sabedoria ancestral e do pensamento mítico, os quais se constituíram, desde sempre, em disciplinas de prazeres do corpo e da mente.

Para aquela Hixkaryana, a condição de indianidade pareceu enigmática porque deveria harmonizar a existência em particular e isso teria influência em seu bem-estar. Mas hoje, entretanto, de forma geral para a etnia, dentro das ausências mentais, patológicas ou não, em certa medida o que vigoram são frustrações em geral na TI Nhamundá-Mapuera. Há a supervalorização do modelo de felicidade construído pelo ocidente e enraizado na Amazônia indígena. Se, no passado, viver em plenitude era focar em conhecimentos e tradições; na atualidade, vida plena é vida distraída, fugaz e sem significado.



* Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios waimiri-atroari, sateré-mawé, hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária

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PIB:Amapá/Norte do Pará

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