Ex-missionário condenado nos EUA trabalhou com índios do Acre

Amazônia Real - http://amazoniareal.com.br/ - 30/01/2014
O ex-missionário Warren Scott Kennell, de 45 anos, condenado na última terça-feira (28) a 58 anos de prisão pela Corte dos Estados Unidos por abuso sexual de meninas indígenas na Amazônia brasileira, trabalhou durante seis anos, de 1995 a 2001, em um posto da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) na aldeia Sete Estrelas, onde vivem índios katukina e yanawawá, no Estado do Acre.

Com dupla cidadania (brasileira e norte-americana), Kennell recebeu um nome indígena, Arô, circulava em várias aldeias da região, sabia falar fluentemente a língua katukina e mesmo já tendo se retirado do posto da MNTB na reserva, ele continuou visitando a área até em 2013. Segundo a coordenação da MNTB, Kennell foi desligado da instituição após ser detido no aeroporto de Orlando, na Flórida, Estados Unidos, ano passado.

As investigações contra Warren Scott Kennell começaram em maio de 2013 quando ele foi preso ao desembarcar no aeroporto de Orlando de uma viagem proveniente de Manaus (AM) pela agência ICE (Immigration and Customs Enforcement), integrada no Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos, que apura crimes de pedofilia.

Dentro da bagagem de mão do ex-missionário, os agentes da ICE encontraram um disco rígido externo com 940 imagens pornográficas de meninas indígenas. A prisão de Kennell desencadeou a Operação Ímpio pela Polícia Federal, que investiga a atuação dele nos Estados do Acre e do Amazonas.

Segundo o delegado Rafael Machado Caldera, da PF do Amazonas, que coordena as investigações da Operação Ímpio, na ocasião da ação foram cumpridos 18 mandados de busca e apreensão na sede da MNTB, em Manaus, e em uma antiga residência de Kennell em Cruzeiro do Sul (AC).

Um inquérito foi aberto para apurar os crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, entre eles, o de fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente na internet, e o estupro de vulnerável. "Ele será julgado pela lei brasileira", disse o delegado.

De acordo com o delegado, as investigações se centralizam agora na identificação das vítimas de Warren Kennell, que foram abusadas quando crianças com o objetivo de esclarecer os fatos e prestar assistência às vítimas. Caldera afirmou que, embora Kennell tenha atuado a maior parte em aldeias katukina, não se pode dizer ainda que os abusos tenham sido cometidos contra meninas desta etnia, já que ele trabalhou entre outros povos indígenas.

Caldera disse que o trabalho de localização tem restrições já que nas fotografias das meninas indígenas não existem referências delas. Em algumas fotos nem mesmos os rostos delas aparecem. Outro obstáculo é que as vítimas estariam agora com idades entre 14 e 16 anos.

"Isso dificulta o nosso trabalho de identificação porque temos fotos de crianças com aparência de 8 e 9 anos. A agência ICE está nos auxiliando no que for necessário para identificar essas meninas, inclusive no fornecimento de auxílio às famílias delas", disse o delegado Caldera.


Culpado

Segundo informações da Procuradoria dos Estados Unidos em Tampa (Flórida) à imprensa internacional, durante os depoimentos Warren Scott Kennell se declarou culpado de duas acusações de produção de pornografia infantil entre 2008 e 2011.

Na sentença, a juíza-chefe distrital, Anne Conway, afirmou que Warren Kennell tinha abusado de sua posição de confiança como missionário. Também destacou que ele admitiu que tinha amizade com as crianças indígenas e que depois abusou sexualmente delas enquanto trabalhava em um projeto da organização Missão Novas Tribos, que tem sua sede principal em Sanford, também na Flórida.

Em nota enviada nesta quarta-feira (29) ao portal Amazônia Real, a direção do MNTB diz que "mais um vez declaramos que estamos chocados pelo caso Warren Scott Kennell e pelas vítimas que sofrem tanto". "A MNTB reafirma compromisso com a prevenção e proteção das crianças e adolescentes" e afirma ser grata aos esforços das autoridades brasileiras em proibir "essa prática ignóbil", diz a nota da missão, destacando que, como o processo tramita em segredo de justiça, nada mais sabe além do que publicado pela imprensa.


Sete Estrelas

Warren Scott Kennell trabalhou até 2001 no posto da aldeia Sete Estrelas, na Terra Indígena do Rio Gregório, e tinha acesso a comunidades de diferentes reservas. Em 2001, conforme nota da MNTB, Kennell passou a morar em uma casa construída próximo da área indígena katukina na BR-364, que liga Rio Branco a Cruzeiro do Sul. Em 2011 ele foi incorporado ao departamento de consultoria da MNTB cuja sede fica em Manaus (AM).

Em entrevista ao Amazônia Real, o professor Shere Katukina, da aldeia Samaúma, na Terra Indígena Campinas-Katukina, disse que Kennell chegou na reserva ainda criança, levado pelos pais norte-americanos missionários. Mais tarde, foi estudar nos Estados Unidos e retornou nos anos 90, já rapaz. O nome Arô foi dado pelos katukina. Não existe uma tradução exata do nome.

Shere disse que não sabia da prisão e da condenação de Kennell e ficou surpreso com a notícia. Segundo o professor indígena, o ex-missionário falava katukina "melhor que os katukina" e gostava de brincar com as crianças.

"Nunca desconfiamos que ele pudesse fazer algum mal. Ele era missionário e por isso tínhamos confiança. Ele costumava dar bombons, brinquedos e passear de moto com as meninas. Agora, com essa notícia, vamos conversar sobre isso aqui na aldeia", disse ele. Conforme o indígena, Kennell foi visto ainda em 2013 visitando algumas aldeias katukina, inclusive a Samaúma.

Shere, que tem 42 anos, fez curso de formação de professor indígena, equivalente ao magistério. Perguntado pela reportagem se tinha noção de crimes como "abuso sexual" contra crianças e pedofilia, ele afirmou negativamente. "Tenho um pouco de estudo, mas não sei o que é isso não", afirmou.

A Funai (Fundação Nacional do Índio) não comentou oficialmente sobre o assunto, mas o indigenista Jairo Lima, servidor da Coordenação Regional do Juruá da Funai, com sede em Cruzeiro do Sul (AC), contou que até 10 anos atrás, a presença da Missão Novas Tribos do Brasil era forte nas terras indígenas do Acre. Um dos postos se instalou na Terra Indígena do rio Gregório, município de Itarauacá, onde fica a aldeia Sete Estrelas. Na reserva, vivem indígenas das etnias yanawawá e katukina.

Ele disse que a ação missionária da MNTB se expandiu para outras reservas, como a Terra Indígena Campinas-Katukina, no município de Cruzeiro do Sul. No início da década de 2000, a presença missionária se reduziu, em parte devido à reação contrária expressa pelos próprios indígenas.

"A Novas Tribos do Brasil atuou no Acre durante muito tempo até que começou a ter um movimento muito grande para a saída dos missionários das aldeias. As lideranças indígenas passaram a questionar a interferência religiosa nas suas culturas. Alguns que saíram das aldeias se instalaram em casas construídas à beira da BR-364. Eles não estavam mais nas aldeias, mas continuavam mantendo contato com os indígenas", diz Jairo Lima, em entrevista ao Amazônia Real.


Desligamento

Em uma nota divulgada após a prisão do ex-missionário, ano passado, a direção do MNTB, no Brasil, disse que Warren Scott Kennell foi imediatamente desligado da instituição quando esta soube do fato. A organização se colocou à disposição das autoridades brasileiras para esclarecimentos e cooperação nas investigações.

A MNTB diz que antes de viajar, Kennel deixou objetos na sede da organização, em Manaus, e que acabaram sendo apreendidos pela polícia. A MNTB informa que o ex-missionário atuou 18 anos na organização, a maior parte do tempo no Acre, e que durante esse tempo "nunca houve nada que levantasse suspeita acerca de sua conduta moral e que suas ações pessoais ligação com a entidade".


Proibições

Shere Katukina disse que a Missão Novas Tribos do Brasil atuou junto ao seu povo durante muito tempo. Ele conta que, quando nasceu, os missionários já estavam nas aldeias, ensinando os índios a escrever na língua katukina. Décadas depois, os próprios indígenas pediram a retirada dos missionários do local, quando eles compreenderam que a ação religiosa estava interferindo na suas culturas.

"A gente aceitava eles aqui, mas depois começaram a fazer muitas proibições. Não queriam que a gente praticasse pajelança, pois diziam que era um mundo de ilusão. Não queriam que a gente tomasse ayahuasca (bebida típica dos indígenas do Acre, que tem efeito alucinógeno e terapêuticos), pois diziam que era pecado. A única coisa boa que fizeram foi nos ensinar a ler na nossa língua. Eles traduziam para a nossa língua os cantos da igreja e a palavra de Deus e assim nos ensinavam a ler", diz Shere.

Shere afirma que muitos indígenas também começaram a reagir ao trabalho a que eram submetidos pelos missionários em troca de remédios e roupas usadas. "Fiz curso, aprendi e entendi. Me conscientizei e conscientizei as pessoas. Vi que tínhamos todo o direito de manter nossa cultura e nossa tradição na aldeia", afirma.



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