Esperança volta com bebê avá-canoeiro

O Globo, Economia, p. 42-43 - 24/02/2013
Uma luz de esperança na 'tribo invisível'

O avá-canoeiro Paxeo, de 1 ano, com o pai Kapitomy'i: após 20 anos com apenas seis pessoas, o nascimento do bebê da "tribo invisível" - assim chamada por se esconder nas árvores do cerrado de Goiás - é a esperança da comunidade, que já teve dois mil índios.
Removidos por uma hidrelétrica em 1996, eles vivem quase na miséria.
Os R$ 6,9 milhões em compensações, relata DANILO FARIELLLO, foram geridos pela Funai, mas não há sinais de que chegaram à aldeia.
PÁGINAS 42 e 43

Esperança volta com bebê avá-canoeiro
Paxeo é o 7o integrante de grupo que já teve 2 mil índios, foi removido por hidrelétrica e hoje vive quase na miséria

DANILO FARIELLO
Enviado especial
danilo.fariello@bsb.oglobo.com.br

Minaçu (GO) - Os olhos apertados e amendoados de Paxeo, de 1 ano, refletem o resquício de uma etnia que já foi composta por mais de duas mil almas, no cerrado brasileiro, onde era conhecida como "a tribo invisível", por sua capacidade de se esconder nas árvores. Já os olhos de Matxa, de 73 anos, a matriarca da aldeia, não podem mais ver esse sopro de esperança de perpetuação da comunidade que salvou do extermínio. Mas, mesmo que não estivesse cega por um glaucoma que resistiu a duas operações, sua percepção da vida permaneceria turva pela situação de miséria e impotência de sua aldeia nos últimos 20 anos, cerceada pela burocracia e lentidão da máquina pública, que deveria tornar viável a expansão daqueles sobreviventes, não só física, mas também cultural.
Desde 1992, os avás-canoeiros ficaram reduzidos a seis pessoas em uma reserva entre Minaçu e Colinas do Sul (GO) - outros dez avás perderam sua identidade cultural vivendo com caiapós e javaés na Ilha do Bananal (TO). Os índios goianos foram realocados pela construção da usina hidrelétrica de Serra da Mesa, em 1996, quando pareciam fadados ao desaparecimento, até que - com auxílio de programas específicos dos empreendedores da usina, Furnas e CPFL - Niwatima, de 24 anos, conheceu e se casou com o índio tapirapé Kapitomy'i, de 26 anos, relação da qual nasceu Avá-canoeiro Paxeo Tapirapé, em 28 de janeiro de 2012.
Funai não encontra relatórios de convênios
Há 17 anos, repórteres do GLOBO estiveram na aldeia mostrando a vida e as perspectivas de sobrevivência de Nakwatxa, hoje com 63 anos, Iawi, de 53, Tuia, de 43, e Thrumak, de 26, além de Matxa e Niwatima, que na época se chamava Putdjawa. Ali começava, de fato, um convênio entre Furnas e CPFL com a Fundação Nacional do Índio (Funai) que previa US$ 2 milhões para a proteção da reserva e o desenvolvimento da comunidade. Entre 1996 e o nascimento de Paxeo, foram investidos no território de 38 mil hectares - mais do que duas vezes a área de Niterói - R$ 6,9 milhões, resultado do convênio, da transferência de royalties pelo uso da água na hidrelétrica e da compra de terras para recompor parte da reserva que foi alagada em 10% do território. Esses recursos tornaram conhecida essa - que é uma das menores etnias do Brasil - como a mais rica de todas. Mas tantos milhões não tiraram os avás-canoeiros de uma vida que beira a miséria. Pior do que isso. Após o fim do convênio em 2002, os índios passaram a ter uma condição de dependência extrema do apoio externo, chegando a mendigar por cestas básicas junto ao povo vizinho à aldeia e à cidade de Minaçu.
Apesar da esperança de perpetuação genética com o nascimento de Paxeo, elementos da cultura avá-canoeiro permanecem adormecidos naquele grupo depois de anos de influência dos brancos e da ineficiência dos projetos socioambientais. Não deu resultado, por exemplo, o projeto para definição de uma ortografia da língua dos avás, uma ramificação do tupi-guarani. Sem isso, a língua tende ao desaparecimento, uma vez que Niwatima e Kapitomy'i já se falam em português. Além disso, de 1992 a 2002, os índios receberam periodicamente cestas básicas especiais, o que, segundo antropólogos, ajudou a reduzir o seu ímpeto à busca ou cultivo do alimento. Com o fim do convênio, não faltaram apenas alimentos, mas também ficaram prejudicados outros tipos de assistências, como a médica.
Indagada, a Funai não conseguiu encontrar os relatórios de balanço do convênio assinado em 1992, sem o qual a avaliação sobre os investimentos ou mesmo a confirmação de que eles chegaram de fato à aldeia fica impossível. A Funai explica que a busca não foi bem-sucedida por causa da recente alteração de seu comando, que ocorreu há quase um ano, e da transferência de documentos da atual sede em Brasília para outra onde os servidores ainda vão se instalar. A olhos nus, porém, fica clara a precariedade na aplicação de diversos programas previstos em 1992, sob responsabilidade da Funai.
- Eles passaram fome com dinheiro em caixa - reconhece Egipson Correia, técnico indigenista da Funai responsável pela aldeia.
As cestas básicas e a perda de tradições inibiram os índios de matar a fome com hábitos alimentares antes tradicionais. Niwatima e Iawi, por exemplo, comem atualmente morcegos e tatus - pratos comuns na comunidade até o contato com o branco - com a mesma frequência que um cidadão de classe média come lagosta no Brasil, ou seja, raramente. E, neste caso, não é por falta de oferta, uma vez que morcegos enfileiram-se no teto da cabana de alvenaria de um cômodo, onde os moradores espalham-se por suas redes.
Maria Augusta Assirati, diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, diz que nos últimos anos, sobretudo após a Constituição de 1988, há uma tentativa de aperfeiçoamento do Estado para promover a reprodução não só física, mas cultural de etnias indígenas.
- O Estado vem em um esforço de aperfeiçoar processos, com um diálogo mais aberto entre os atores envolvidos, mas ainda há necessidade de avanços - reconhece.
Apesar de Convênio, educação não ocorreu
Na ocasião do primeiro convênio, diz o indigenista Correia, os índios não foram ouvidos, por exemplo, sobre o local onde foi instalada a barraca de alvenaria com água encanada, mas com esgoto precário e sem luz, onde vivem hoje. Entre os 38 mil hectares de reserva disponível, a aldeia foi instalada pela Funai em um vale cercado de montanhas por todos os lados. Considerado o histórico de massacre dos avás-canoeiros, que quase desapareceram em conflitos com bandeirantes e garimpeiros no passado, a falta de um horizonte acaba levando os moradores a um estado de alerta constante e a uma necessidade de superar colinas para explorar a reserva.
- Aqui só dá milho pequenininho - disse Iawi, reclamando do local da casa.
Entre os milhões de reais reservados para os índios, mas que parecem não ter atravessado a porteira da reserva, estão recursos para educação. Hoje, só Niwatima sabe ler. Seu irmão, Thrumak, aprendeu matemática no convívio com brancos. Segundo Furnas, em 2001, foi feito um convênio com a Universidade Federal de Goiás com professoras que ensinavam os índios. "No período de um ano não foi constatado qualquer resultado para os índios, Funai ou Furnas. Por essa razão, a Funai solicitou a não renovação do convênio, bem como ainda não apresentou nova proposta para educação dos índios", informa Furnas.
- Fazer das quatro pessoas que restaram de uma tribo objeto de uma proteção indigenista com verbas milionárias é uma forma bizarra de preservação e até uma forma de violência, porque desconsidera aspectos importantes da vida deles. Essa sociedade, que vive em situação de cativeiro, passou a ser dirigida por tutores - disse Cristhian Teófilo da Silva, professor de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), que defendeu tese de doutorado sobre o grupo.


Índios não têm mais animais para a caça
Impacto socioambiental agora põe a construção de usinas hidrelétricas em xeque

DANILO FARIELLO
Enviado especial
danilo.fariello@bsb.oglobo.com.br

MINAÇU (GO) - A espingarda de Iawi, companheira de caminhadas pela selva, não tem balas. Tampouco elas são necessárias, porque já não existem animais selvagens a serem perseguidos na reserva dos avás-canoeiros em Goiás. A área é cercada por pasto e gado. O homem que era responsável pelo provimento da tribo também já não tem capacidade física para grandes perseguições cerrado adentro. Durante uma curta caminhada de 20 minutos até o córrego Pirapítinga, nas proximidades da aldeia, Iawi, de 53 anos, parou para recobrar o fôlego sete vezes.
Não há mais tempo para o índio ver os resultados de uma nova fase das políticas indigenistas no Brasil, que resultaram em um novo convênio firmado entre Funai e empreendedores no ano passado, visando à recuperação de aspectos culturais adormecidos entre os avás. Com anemia severa e baço aumentado, o resultado de um exame previsto para o dia 10 poderá comprovar as suspeitas de que tem leucemia.
Os avás-canoeiros estão entre as primeiras etnias beneficiadas pela Constituição de 1988, que obrigou que grandes projetos de infraestrutura com impacto em terras indígenas fossem submetidos ao Congresso antes da sua aprovação. Naquele momento, o foco principal era a demarcação das terras e a sobrevivência dos índios. De lá para cá, os debates quanto à interferência do homem branco nessas comunidades se acirraram com uma oposição cada vez mais forte aos riscos socioambientais dos projetos. Com isso, o governo tem adotado posição mais defensiva.
O novo convênio assinado entre Furnas e CPFL (empreendedores da usina hidrelétrica de Serra da Mesa) com a Funai já foi concebido de forma diferente do primeiro acordo, de 1992. As ações e metas previstas no convênio estão agora calcadas em uma preocupação maior com a preservação física e cultural das etnias. Casos como o dos avás-canoeiros são prioritários para a Funai por conta do número extremamente reduzido de integrantes dessa tribo.
Episódios recentes, como o debate internacional sobre a construção de Belo Monte, no Pará, e seu impacto sobre os povos do Xingu, têm levado o governo a reavaliar como aproveitar o potencial hidrelétrico brasileiro. Segundo o Ministério de Minas e Energia, o potencial de construção de novas hidrelétricas no Brasil acabará entre 2025 e 2030 porque, diante de pressões internas e externas, há um entendimento de que o país não deve avançar mais pela Amazônia para gerar energia.
O caso de Belo Monte ganhou notoriedade internacional e fez o diretor James Cameron, de "Avatar", vir ao Brasil em 2009. Diante das críticas, o governo teve de montar uma força-tarefa na área de comunicação para defender o empreendimento, que nos últimos dias voltou a ter sua sustentabilidade contestada. Faltam contrapartidas para os empreendedores responsáveis.
Teles Pires também preocupa
Na quinta-feira, índios e o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, travaram um diálogo tenso, na entrada do Palácio do Planalto, por conta da construção da usina de Teles Pires, no Mato Grosso, e seus impactos nas comunidades. Por esses motivos, os últimos projetos que envolvem hidrelétricas na Amazônia, como as usinas do Tapajós, também no Pará, já exigem mais cuidados ambientais.
Por outro lado, no ano passado, a exploração econômica das reservas indígenas já demarcadas no Brasilquase tornou-se uma realidade com a edição da portaria 303 pela Advocacia-Geral da União (AGU). A norma replicava para todo o país definições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para pacificar a disputa da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, abrindo espaço na prática para construção de estradas e atividades de mineração nessas áreas.
Diante da iminência do risco de uma intervenção desenfreada nas reservas sem grande debate social e após uma grita de representantes indígenas, o governo teve de recuar. A portaria foi suspensa depois que o Supremo indicou que a decisão não pode ser aplicada automaticamente e lembrou que há especificidades e recursos relacionados a Raposa-Serra do Sol a serem julgados em definitivo. A portaria 303 da AGU está suspensa até a decisão do Supremo.
O governo, no entanto, já se articula para tratar dos efeitos de estradas que cortam reservas ou de mineração em territórios indígenas. As discussões, que envolvem diversos ministérios, preveem royalties a serem pagos aos índios como compensação financeira pelo impacto ambiental. Atualmente eles só têm direito a essas compensações no caso de exploração hídrica, ou seja da construção de hidrelétricas.


Funai administra recursos milionários

Assim como para muitos moradores do Centro-Oeste brasileiro, criar gado é a esperança de sobrevivência e prosperidade para os avás-canoeiros. O termo de convênio assinado entre Furnas, CPFL e Funai prevê a possibilidade de capacitação para criação de gado. Melhor do que isso, o novo acordo assegura que os índios sejam ouvidos sobre a destinação dos recursos, diferentemente do acordo firmado em 1992.
É Kapitomy'i, o tapirapé que gerou o indiozinho Paxeo e desponta como sucessor de Iawi na liderança dos avás, quem traz da sua tribo de origem a experiência no trato com o gado para corte, uma atividade polêmica, uma vez que aldeias já foram acusadas de arrendar trechos de suas reservas para produtores de gado no Brasil. É o dinheiro vivo resultante dessa atividade que indica aos índios uma possibilidade de autonomia, nunca experimentada, já que os milhões destinados à aldeia sempre foram administrados por algum organismo externo - Funai ou as empresas.
Outra forma de independência financeira procurada pelos índios é a aposentadoria pleiteada para Matxa e Nakwatxa, as mais idosas. Elas já têm visita agendada em uma agência do INSS para dar entrada nos papéis. Demorou um ano, mas Kapitomy'i conseguiu também mais de R$ 2 mil em auxílio-maternidade para Niwatima pelo nascimento de Paxeo, o que lhes permite encomendar na cidade de Minaçu frangos abatidos para alimentação da tribo.
Só R$ 1,2 milhão liberado
Maria Augusta Assirati, chefe da diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, disse que a autonomia e autodeterminação do povo indígena, que podem ser obtidas pela criação de gado, passaram a ser metas com Constituição de 1988.
- Deixou-se de lado a visão de que os índios deveriam ser tutelados pelos brancos. A gente faz as contas e monta o projeto, mas são eles que decidem.
No entanto, mesmo nessa nova fase, as iniciativas ainda não saíram do papel. Do novo convênio firmado em maio do ano passado, no valor de R$ 6,8 milhões, as empresas liberaram em junho para a Funai R$ 1,2 milhão, valor que até hoje ainda não aportou na aldeia. Só na semana passada chegou ao local o primeiro grupo da Funai para fazer um levantamento das condições do grupo e discutir com eles a aplicação dos recursos.


"CANOA, CANOA"

EM 1978, MILTON CANTOU A TRIBO

Em 1978, a "tribo invisível" foi captada pelos radares da música popular brasileira. Lançado naquele ano, o disco "Clube da Esquina 2", de Milton Nascimento, trazia a canção "Canoa, canoa", cujos versos faziam referência aos avás-canoeiros: "Avá-canoeiro prefere as águas/ Avá-canoeiro prefere o rio/ Avá-canoeiro prefere os peixes/ Avá-canoeiro prefere remar". A composição nasceu num igarapé amazônico, como lembra Nelson Angelo, parceiro de Fernando Brant na canção:
- Eu tinha começado a fazer duas músicas, que acabaram virando a primeira e a segunda parte de "Canoa, canoa". Estava em Manaus, onde tinha ido tocar.
Descemos um igarapé numa canoazinha até chegar ao Rio Amazonas. Estava com o violão, (o percussionista) Robertinho Silva batucava com o remo na canoa. Ali juntei as duas melodias e elas se tornaram uma só.
Nelson pediu então que o letrista Brant escrevesse versos que tivessem a ideia de canoa como tema. A canção começa:
"Canoa, canoa desce/ No meio do Rio Araguaia desce/ No meio da noite alta da floresta/ Levando a solidão e a coragem/ Dos homens que são".
- Nosso amigo Tavinho Moura lembrou que havia uma tribo, os avá-canoeiros, que viviam em canoas - conta o compositor. - Fernando então fez a letra pensando nesses índios.
Nelson também assina o arranjo da gravação de "Canoa, canoa" em "Clube da Esquina 2". Ali, ao lado de cellos, piano, flauta, bateria, baixo e violão, são usados timbres que remetem ao universo indígena, como bambu e pios.
(Leonardo Lichote)

O Globo, 24/02/2013, Economia, p. 1, 42-43

http://oglobo.globo.com/economia/esperanca-volta-com-bebe-ava-canoeiro-7659606
http://oglobo.globo.com/economia/indios-nao-tem-mais-animais-para-caca-7659620
PIB:Goiás/Maranhão/Tocantins

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