Demarcação traumática

A Tarde - 14/06/2009
Caso de Banzaê expõe os riscos que rondam os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no sul

Perda de território, de população e queda na atividade econômica, por conta da demarcação de reserva indígena. Estes riscos, que rondam os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no sul do Estado, por conta de uma futura demarcação de terras dos tupinambás, já foram enfrentados por Banzaê, no nordeste da Bahia.

Criado em 1989, quando foi desmembrado de Ribeira do Pombal, Banzaê, que está entre os 50 menores municípios baianos (213 km²), teve que abrigar a reserva kiriri, que ocupou 60% de sua área.

Executada há pouco mais de dez anos, a demarcação ainda provoca problemas, embora muito menores do que em 1998, quando os índios completaram o processo de expulsão dos moradores dos distritos que ficavam dentro de suas terras, obrigandoos a sair correndo de casa, deixando tudo para trás e virando desabrigados que lotaram a sede do município.

A forma traumática como tudo ocorreu deixa vestígios até hoje. A demarcação tinha acontecido em 1982, mas nunca se concretizava na prática. Cansados de esperar, os índios resolveram ocupar na marra a partir de 1995, o que oficialmente já lhes pertencia.

Começaram pelo maior de todos os povoados, o de Mirandela, marco central das terras cedidas aos índios pelo rei de Portugal no século XVII. Os moradores, em grande parte pequenos agricultores, se viram da noite para o dia sem posses e sem meios de sobrevivência, pois viviam do campo e foram forçados a mudar para a cidade. A maior parte teve que esperar quatro anos pela indenização da Funai.

"Muitas pessoas que foram expulsas ainda hoje têm o olhar triste", constata a prefeita Jailma Alves. Reeleita em 2006, ela cumpre o terceiro mandato. Era Jailma a prefeita em 1998. A investida indígena obrigou a prefeitura a decretar estado de emergência e recorrer aos governos estadual e federal em busca de ajuda. Cerca de 600 casas foram construídas às pressas para abrigar as famílias desalojadas. Ao todo havia sete povoados no que hoje é território indígena, que possui área de 12.320 hectares.

MUDANÇAS - O conflito causou profundas mudanças no perfil do município. A maioria da população passou a ser urbana.

"Triplicou a população da sede", contabiliza a prefeita. No entanto, ela enxerga que isto acabou gerando demanda e fazendo com que a cidade ganhasse novos serviços. "Antes tudo era comprado em Ribeira do Pombal", admite.

Entretanto muita gente foi embora e a população total encolheu. Quem ficou, teve que se adaptar. Um exemplo é o comerciante Mauro Morais, de 49 anos. É dono de uma loja de material de construção, mas conta que teve dificuldades para sobreviver, ao ser expulso de Mirandela.

"Perdi gado, perdi as terras. A minha sorte é que já tinha um pequeno comércio para venda de carne", lembra. Foi somente com o dinheiro da indenização paga em 2002 que ele conseguiu montar a loja e se reequilibrar.

Situação pior vive quem ficou sem receber. 1.500 famílias não indígenas dos sete povoados perderam a moradia. Destas, aproximadamente 100 não tiveram reconhecido o direito à indenização.

Segundo a prefeita Jailma, a Funai alegou que elas compraram terras dentro da reserva depois que a área já havia sido demarcada. Portanto, teriam agido de má fé.

Território dos kiriris foi definido no século XVIII

O território hoje ocupado pelos índios kiriris foi definido ainda no século XVIII. A esta altura, eles já viviam sob a tutela de missionários jesuítas, que pediam ao rei de Portugal para oficializar a posse de áreas para os índios, numa tentativa de pôr fim aos conflitos constantes com posseiros que adentravam o sertão, criando gado.

A terra kiriri foi demarcada a partir de Mirandela, com uma légua de sesmaria (correspondente a 6.600 metros), partindo da igreja do povoado em todas as direções, formando o desenho de um octógono.

O rei de Portugal decretou a cessão da área, mas os jesuítas foram expulsos do País em 1756, por decisão do marquês de Pombal, todo poderoso da corte na época. Quatro anos depois, o lugar foi elevado à condição de vila, intensificando o processo de ocupação por parte dos brancos.

Somente em 1949 o órgão antecessor da Funai, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), instalouse em Mirandela e os índios intensificaram os pedidos para o reconhecimento da terra, concedida ainda no tempo do Império.

INDEFINIÇÃO - Foi a indefinição do SPI e da Funai, que passaram algum tempo praticamente abandonadas e sem defender o interesse dos indígenas, que levou a tribo a recuperar a ideia de chefia, com a nomeação de um cacique em 1972. Este passou a liderar a organização e em 1981 finalmente ocorreu a demarcação dos 12.320 hectares dos kiriris. (a reserva ecológica do Raso da Catarina, criada para proteger a fauna no norte da Bahia, tem 105 mil hectares) Não houve, porém, ação governamental para retirar fazendeiros e liberar a terra para os índios. Estes é que foram gradativamente retomando propriedades até que o processo se tornasse irreversível. A ocupação de Mirandela ocorreu em 1995, a do povoado Gado Velhaco no ano seguinte e a da Baixa da Cangalha em 1997. A desocupação total da terra ocorreu em 1998, com a retomada dos povoados de Marcação, Araçá, Segredo e Pau Ferro.

Decisão do TRF fortalece produtores rurais no sul

Os produtores rurais que têm propriedades nos 47.376 hectares indicados pelo relatório da Funai como território tupinambá, nos municípios de Una, Ilhéus e Buerarema, no sul da Bahia, acreditam que saíram fortalecidos na luta contra os índios, com recente decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em resposta ao recurso de um produtor que teve a fazenda invadida. Na sentença, a desembargadora Maria Isabel Gallotti Rodrigues afirma que o "desapossamento repentino de quem exerce naquelas terras atividade agropecuária há vários anos, provocaria, neste momento, uma situação de desequilíbrio".

Para os produtores, a decisão do TRF valida as ações de reintegração de posse, que foram suspensas até maio passado. O pedido de suspensão foi feito pela Funai, após incidentes entre índios e Polícia Federal, em outubro passado, na Serra do Padeiro, em Buerarema.

Para o cacique José Sinval, integrante da comissão de comunicação dos tupinambás, os índios consideram a liminar concedida pelo TRF como um caso isolado, que beneficia apenas um produtor com a reintegração de posse. Nas demais áreas retomadas, segundo José Sinval, a suspensão da reintegração é por tempo indefinido.

Ricardo Mujaes Meira, presidente do Sindicato Rural de Una e um dos membros da comissão de produtores que trabalha para contestar o relatório da Funai, informa que contrataram um advogado, além de uma antropóloga, que já produziu um relatório em que não reconhece a presença de tupinambás nas terras, e uma historiadora.

Na próxima semana, as duas farão os estudos finais na área, para subsidiar a defesa coletiva, que será encaminhada ao Ministério da Justiça até 18 de agosto.
Índios:Terras/Demarcação

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