STF cede à pressão indígena, mas votação do marco temporal é virtual

Amazonia Real - https://amazoniareal.com.br - 08/12/2025
Manaus (AM) - A intensa mobilização de lideranças indígenas em Brasília conseguiu forçar o Supremo Tribunal Federal (STF) a recuar da decisão de julgamento virtual das ações que discutem a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, conhecida como marco temporal. Mas a Corte transformou o que deveria ser uma vitória plena em uma concessão parcial, garantindo apenas a sessão presencial para a leitura do relatório e as sustentações orais, agendadas para 10 de dezembro. A votação, que definirá o futuro das demarcações no País, voltará, em seguida, a ser realizada sob a proteção do plenário virtual.

Para o movimento indígena, a decisão compromete a participação dos povos originários e minimiza o debate sobre a lei, que restringe a demarcação de terras e é chamda de "Lei do Genocídio Indígena". Dinamam Tuxá, advogado, assessor jurídico e coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirmou que a tentativa de retomada do caso no plenário virtual representava um risco político e jurídico significativo ao comprometer a participação indígena em um debate que afeta os direitos originários.

"Ao deslocar um tema que envolve o futuro das demarcações, a proteção territorial e as obrigações climáticas do Estado brasileiro para um ambiente menos deliberativo, é limitada a participação indígena, com nossas rezas, cantos e danças no decorrer das sessões, bem como a possibilidade de um diálogo qualificado entre os ministros", disse Dinamam Tuxá, em entrevista à Amazônia Real. A Apib havia protocolado uma manifestação no STF exigindo que o julgamento das ações (ADIs 7582, 7583 e 7586 e ADO 86 e ADC 87) fosse realizado no plenário físico.

Não se trata apenas de uma questão técnica ou de rito processual. A liderança Tuxá lembrou que a adoção do formato virtual em casos desta natureza contraria o padrão histórico de julgamentos presenciais em temas de direitos fundamentais. Além disso, amplia o risco de consolidação de retrocessos já produzidos pela chamada "Lei do Genocídio Indígena", que nasceu para confrontar a decisão do STF no Recurso Extraordinário (RE) 1017365 sobre os direitos territoriais do povo indígena Xokleng (Laklãnõ), envolvendo a disputa pela Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ em Santa Catarina.

O caso da TI Ibirama-Laklãnõ ajudoua definir a inconstitucionalidade da tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, em setembro de 2023. Logo depois, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou parcialmente o projeto de lei do Congresso. Contrariando a decisão presidencial, os parlamentares derrubaram os vetos em dezembro de 2023, em um movimento feito pelo lobby político do agronegócio e da mineração aliado a partidos de direita como Partido Liberal (PL), Partido Progressistas (PP) e o Republicanos, que protocolaram no STF as ações para manter a validade do projeto de lei que reconhecia a tese do marco temporal.

Em contrapartida, organizações como a Apib e os partidos políticos PT, PDT, PV e PCdoB ingressaram com Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Todas essas ações ficaram sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. A Apib é autora da ADI 7582. O movimento indígena defende a participação efetiva dos povos indígenas na jurisdição constitucional responsável por proteger direitos contramajoritários e garantir salvaguardas a populações vulneráveis.

No fim de 2024, Gilmar Mendes suspendeu todas as ações relativas à demarcação de terras no País e instituiu uma mesa de conciliação para debater o marco temporal. O movimento indígena denunciou o processo de conciliação como unilateral e repleto de pressões políticas e empresariais. A Apib se retirou da mesa de comissão em agosto de 2024, por imposições inaceitáveis sobre os direitos indígenas. O colegiado tinha 24 integrantes e a entidade representante dos indígenas apenas 6. A comissão tomou decisões por maioria dos votantes.

A comissão foi mantida mesmo com a saída da principal entidade representativa dos povos indígenas brasileiros, com diversas reuniões até seu encerramento em junho de 2025.

Julgamento precisa ter participação indígena

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) afirma que a decisão de um julgamento virtual limita a participação direta dos povos indígenas, reduz o controle social sobre as decisões que afetam territórios indígenas e fragiliza os princípios constitucionais e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a consulta livre, prévia e informada a povos e comunidades tradicionais sobre qualquer projeto que os afetam.

"Reafirmamos: decisões que impactam diretamente nossos territórios não podem ocorrer sem a presença dos povos indígenas. Defender o formato presencial é defender a participação plena, o controle social e o respeito aos direitos constitucionais e à Convenção 169 da OIT. A Coiab seguirá mobilizada, articulada e vigilante para assegurar que o julgamento seja conduzido com seriedade, transparência e responsabilidade histórica", manifestou a organização.

Após garantir a participação presencial, ainda que parcial, no julgamento, o movimento indígena cobra que o STF respeite o que foi decidido no Tema 1031, assegure ampla presença indígena na sessão, declare a inconstitucionalidade integral da Lei 14.701/2023, restabeleça por completo o rito constitucional de demarcação previsto no artigo 231 da Constituição e reafirme a proteção das terras indígenas como fundamento essencial para a vida, a cultura e o equilíbrio climático do país.

Durante a parte do julgamento presencial no dia 10, os ministros deverão se posicionar sobre o texto final aprovado pela comissão especial responsável por discutir a proposta de mudança na legislação que trata das demarcações de terras indígenas.

Marco temporal retrocede direitos

Para o movimento indígena, a lei do marco temporal representa o maior retrocesso normativo aos direitos indígenas desde a redemocratização, pois restringe a demarcação de terras indígenas ao exigir que os povos originários comprovem que ocupavam seus territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A tese desconsidera expulsões, deslocamentos forçados e violências históricas sofridas pelas comunidades indígenas no Brasil.

Segundo Dinamam Tuxá, a tese é inconstitucional, pois foi aprovada sem a realização da consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas. "Essa consulta é etapa obrigatória do processo legislativo e não pode ser substituída por audiências públicas ou outros mecanismos genéricos", disse. O texto também impõe graves prejuízos ao procedimento de demarcação de territórios indígenas.

"Permite contestações em qualquer fase, reabrir o debate sobre indenizações, impedir a correção do perímetro mesmo quando houver erro do Estado e autorizar a intimação de particulares já na fase de estudos preliminares, quando ainda não há delimitação da ocupação tradicional. Essas medidas fragilizam a condução técnica do processo e ampliam indevidamente a interferência de interesses privados", explicou Dinamam.

Há ainda o risco de que situações excepcionais sejam tomadas como regra geral. No acordo envolvendo aTI Ñanderu Marangatu, no Mato Grosso do Sul, ministros do STF ressaltaram que temas estruturais, como indenização da terra nua, boa-fé e direito de retenção, não podem ser definidos por acordos pontuais e devem aguardar o julgamento do RE 1.017.365 (Tema 1031). Os ministros também enfatizaram que a excepcionalidade daquele caso, marcado por episódios de violência extrema, não autoriza a criação de critérios nacionais para as demarcações.

Pelo acordo firmado em setembro de 2024, serão pagos cerca de 28 milhões de reais em indenização pelas benfeitorias realizadas por ruralistas na região de Antônio João (MS), conforme prevê a Constituição. Outros 118 milhões de reais correspondem ao Valor da Terra Nua (VTN), índice que representa o valor fundiário de áreas incluídas nos limites de determinados imóveis rurais, segundo títulos de propriedade.

A advogada Renata Vieira, do Instituto Socioambiental (ISA), reforça que a lei que será votada traz dispositivos que violam direitos dos povos indígenas que estão assegurados na Constituição, sobretudo os direitos sobre as suas terras.

"Além de reproduzir a tese do marco temporal, que já foi julgada inconstitucional pelo STF, o texto da lei apresenta diversos dispositivos que revisam o procedimento administrativo de demarcação, trazendo para dentro dele aspectos políticos e entraves burocráticos que podem gerar mais morosidade ao processo administrativo. As disposições da Lei 14.701 podem tornar inviável o procedimento demarcatório ou mesmo interminável", explicou.

Um estudo realizado pelo ISA comprova o papel insubstituível das terras indígenas na Amazônia para a segurança hídrica e a regulação climática de grande parte do Brasil. O estudo aponta que as terras indígenas são responsáveis por regular o ciclo de chuvas de ao menos 18 estados e do Distrito Federal, influenciando 80% do volume de precipitações necessárias para o país.

Esse serviço ecossistêmico decorre não apenas da conservação da área, mas, sobretudo, do manejo comunitário tradicional exercido pelos povos indígenas. Em relação ao desmatamento, o estudo ressalta que, na Amazônia, as TIs constituem a principal barreira ao desmatamento. São 16 vezes mais preservadas que as áreas ao seu redor. O índice de desmatamento nesses territórios é de apenas 1,7%, enquanto nas demais regiões alcança 27%.

De acordo com a advogada do ISA, em um cenário onde os locais mais protegidos da floresta amazônica são as regiões onde se tem terras indígenas e áreas de proteção, os entraves burocráticos e políticos legitimados pelo marco temporal poderão afetar a política ambiental e climática do país.

"Os riscos são muitos. A lei traz diversos dispositivos que relativizam a posse plena e o usufruto exclusivo dos recursos naturais pelos indígenas, permitindo que atividades econômicas e de infraestrutura sejam implementadas independente da vontade dos indígenas, tais como instalação de bases, unidades e postos militares, a expansão estratégica da malha viária, construção de rodovias, ferrovias, linhas de transmissão, além da exploração de alternativas energéticas e das riquezas de cunho estratégico, minerais e riquezas hídricas com potencial energético. Tais atividades são potencialmente poluidoras e relativizam os impactos socioambientais aos povos indígenas e ao meio ambiente", disse Vieira.

Violência contra os povos indígenas

Com base nos dados oficiais obtidos junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), secretarias estaduais de saúde e ao Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), por meio de pedidos realizados via Lei de Acesso à Informação (LAI) e de consultas a bases de dados públicas disponibilizadas pelos órgãos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) constatou o assassinato de 211 indígenas no Brasil em 2024, primeiro ano da vigência do marco temporal, aprovado pelo Congresso e promulgado nos últimos dias de dezembro de 2023.

Mesmo com os pedidos dos povos indígenas para que a vigência da lei fosse suspensa até que sua constitucionalidade fosse analisada pelo STF, o projeto tem agravado a insegurança jurídica, psicológica e física nos territórios. Roraima lidera o ranking com 57 casos de assassinatos de pessoas indígenas, seguido pelo Amazonas (45) e Mato Grosso do Sul (33). A maioria das vítimas eram jovens (33,6%) entre 20 e 29 anos. No Amazonas, 12 vítimas eram do gênero feminino e 33 do gênero masculino. O relatório do Cimi documentou 230 casos de invasão possessória, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio dos povos indígenas em 159 Terras Indígenas (TIs) de 21 estados do Brasil, Desses conflitos, 19 ocorreram no Amazonas.

A maioria dos casos desta categoria (61%) atingiu terras indígenas regularizadas (85), reservadas (10) ou dominiais (2). Os outros 62 territórios (39%) que registraram casos semelhantes não estão totalmente regularizados ou ainda não tiveram providências para iniciar seu processo de demarcação. Entre os conflitos destacados pelo relatório estão os relativos a direitos territoriais. Segundo o relatório, "uma das principais consequências da promulgação (do marco temporal) foi a estagnação quase completa dos processos demarcatórios em curso".

Em nota pública, as lideranças indígenas do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização representativa dos povos Wapichana, Taurepang, Macuxi, Yanomami, Yekuana, Sapará, Pirititi, Patamona, Ingarikó e Wai Wai, declarou que o marco temporal já produz efeitos graves: paralisa processos de demarcação, fortalece invasores e coloca em risco a vida de parentes que lutam pela retomada de seus territórios, muitos deles sob ameaça constante ou já vitimados pela violência de fazendeiros.

"Reafirmamos nossa exigência para que o STF cumpra a Constituição Federal, que reconhece que nossos direitos territoriais são originários e não podem ser condicionados a uma data arbitrária, como 5 de outubro de 1988. A própria Corte já rejeitou essa tese ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, em 2023", diz um trecho do texto.

O CIR afirmou que os principais defensores da lei são setores do agronegócio, da mineração e "determinados parlamentares". "Caso seja mantida, seus impactos serão devastadores: intensificação das violências contra povos indígenas; paralisação permanente das demarcações; avanço da mineração e do arrendamento em terras indígenas; violação do direito de consulta prévia, livre e informada; permanência e fortalecimento de ocupantes ilegais; risco real de extermínio de povos e comunidades inteiras; insegurança jurídica; além de estimular ações judiciais contra terras indígenas já demarcadas", declarou a organização.

Segundo Dinamam Tuxá, o julgamento terá impactos imediatos sobre os povos e territórios que aguardam demarcação. A eventual validação de dispositivos da Lei 14.701/2023 possibilita a paralisação de procedimentos no rito demarcatório, aumenta conflitos e fragiliza a proteção territorial ao permitir interferências antecipadas de particulares, anulações retroativas e obstáculos que tornam inviável a conclusão dos estudos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

"A decisão de julgamento do marco temporal não diz respeito apenas ao andamento administrativo das demarcações, mas à preservação da vida, da integridade cultural e da segurança dos territórios que sustentam a sobrevivência física e espiritual dos povos indígenas e contribuem de forma decisiva para o equilíbrio climático do país e do planeta", disse a liderança indígena.

Agro contesta demarcações

No fim de novembro, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) protocolou uma notícia-crime junto à Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e servidores envolvidos na edição de decretos e portarias que demarcaram terras indígenas no dia 18 de novembro, durante a COP30, em Belém (PA). Para a bancada ruralista, os atos foram praticados em desacordo com a lei do marco temporal.

A iniciativa dos ruralistas é umareação direta ao anúncio de homologação das TIs Kaxuyana-Tunayana, localizada nos estados do Pará e Amazonas; e Manoki, Uirapuru e Estação Parecis, no estado de Mato Grosso. Em outubro, a Apib divulgou uma lista na qual havia 70 terras indígenas aguardando homologação. Pela Lista da Apib, 66 terras indígenas ainda aguardam a regularização dos territórios no Brasil.

Além das homologações, o Ministério da Justiça também publicou dez novas portarias declaratórias de demarcação, conforme prometido pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, durante a COP30. A lista inclui: TI Vista Alegre (AM - Mura); TI Tupinambá de Olivença (BA - Tupinambá); TI Comexatibá (BA - Pataxó); TI Ypoí Triunfo (MS - Guarani); TI Sawré Ba'pim (PA - Munduruku); TI Pankará da Serra do Arapuá (PE - Pankara); TI Sambaqui (PR - Guarani); TI Ka'aguy Hovy (SP - Guarani); TI Pakurity (SP - Guarani) e TI Ka'aguy Mirim (SP - Guarani).

Na representação apresentada à PGR, a FPA alega que os agentes públicos "podem ter cometido o crime de prevaricação, previsto no artigo 319 do Código Penal", ao editar ou participar de atos de ofício "contra disposição expressa de lei, com o objetivo de satisfazer interesse pessoal ou político". Os empresários do agronegócio justificam que o encerramento da COP30 foi usado como uma tentativa de criar "uma narrativa internacional de avanço demarcatório à revelia do devido processo legal e da legislação vigente".

A ausência de menção a aspectos obrigatórios do marco temporal, como direito de retenção, indenização de não indígenas e vedação de ampliação de áreas já demarcadas, foi um dos indicadores para a protocolização da notícia-crime contra as demarcações. Para o deputado Pedro Lupion (PP-PR), presidente da FPA, a sucessão de atos publicados pelo governo federal criou "um choque entre os Três Poderes", uma vez que o Executivo avançou com demarcações enquanto o STF conduzia a conciliação da ADC 87, e o Congresso aguardava a suspensão de novos atos até o fim das negociações.

A Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA) também tem pressionado para impedir revisões de limites territoriais mesmo quando há erros reconhecidos do próprio Estado, além de tentar aplicar retroativamente a Lei 14.701/2023 a demarcações realizadas há décadas, inclusive às terras homologadas durante a COP30 e às áreas com portarias declaratórias.

A FPA reforçou que a CNA já solicitou ao ministro Gilmar Mendes, relator da ADC 87, a anulação cautelar dos quatro decretos de homologação e das dez portarias declaratórias publicados em 18 de novembro pelo governo federal, até que seja realizada a verificação completa do cumprimento das exigências legais.

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