Indígenas dividem rios com traficantes e invasores em viagem de 'peque-peque' por assistência

OESP - https://www.estadao.com.br/ - 02/04/2024
Indígenas dividem rios com traficantes e invasores em viagem de 'peque-peque' por assistência
Povos do Vale do Javari, na Amazônia, percorrem rotas cobiçadas pelo crime organizado para buscar benefícios sociais e atendimento médico; espera por serviços os deixa por meses vivendo dentro de canoas em condição de miséria

Vinícius Valfré

02/04/2024

A viagem pelas curvas dos rios Ituí, Itaquaí e Javari, na Amazônia, é cada vez mais perigosa para quem nasceu nestas margens. Traficantes de drogas e de armas, pescadores ilegais, caçadores e garimpeiros usam as mesmas calhas pelas quais indígenas descem com famílias inteiras dentro de peque-peques. A peregrinação nas pequenas canoas motorizadas chega a durar mais de quatro dias.

Foi exatamente por este caminho que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram interceptados e assassinados em junho de 2022. Pereira tinha um histórico de serviços em defesa dos povos do Javari e a atuação dele passou a incomodar grupos criminosos que exploram a região.

Apesar da comoção geral, pouca coisa mudou de lá para cá. As ameaças continuam. Nesta semana, indígenas denunciaram a circulação de nauas dentro de um corredor na mata utilizado por grupos que vivem em isolamento. A área invadida é rica em canamã - os nutrientes que fazem dela um santuário para uma variedade de animais buscados por invasores e necessários à dieta de subsistência dos nativos.

O destino dos indígenas que partem das florestas do oeste do Amazonas por essa rota é o cais do município de Atalaia do Norte (AM), o primeiro centro urbano fora da terra indígena. Na margem da cidade, kanamaris, mayorunas e matises do Javari se aglomeram em condição de miséria dentro das canoas cobertas com lona ou sob barracões abandonados. Por ali permanecem por três, quatro ou cinco meses.

A migração, em tese, é provisória. Dura o tempo da espera pelo atendimento médico que não existe na aldeia, o de conseguir acessar benefícios sociais como o Bolsa Família ou o de receber por serviços prestados à Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

Enquanto se desvencilham da burocracia dos brancos depois da longa viagem de barco, viram dependentes de cestas básicas e ficam à mercê da violência e das seduções da cidade, como o álcool, e de comerciantes mafiosos que retêm cartões de benefícios sociais de indígenas. A situação rende um inquérito em tramitação no Ministério Público Federal.

Esse fluxo migratório permanente e os riscos enfrentados por comunidades vulneráveis sintetizam a deficiência da prestação de serviço a cidadãos que vivem nos extremos do País e a pressão do crime organizado em uma área de infinitas riquezas naturais. Com efeito, agravam problemas sociais na pequena cidade da Tríplice Fronteira do Brasil com a Colômbia e com o Peru.

A precariedade no atendimento escolar e sanitário força os deslocamentos precários. A polícia local não tem estrutura para enfrentar os pequenos e grandes traficantes de drogas, nacionais e estrangeiros, que atuam por dentro das matas e até na praça central de Atalaia. Do outro lado do rio que margeia a cidade, já território peruano, lavouras de coca podem ser encontradas em meia hora de viagem, contam policiais e agentes da Funai.

As consequências do descaso e da violência nesta parte remota do Brasil podem ter começado a aparecer na numeralha oficial. Dados do Censo 2022 apontam uma queda no número de habitantes do Vale do Javari. Agora são 5.598, contra 6.978 na medição de 2010.

É uma redução de 19,7%, significativa sobretudo por se tratar de uma das áreas ainda mais preservadas da Amazônia e onde está a maior concentração de povos isolados do mundo. Na cidade, os números também indicam um fenômeno em curso. Ao longo dos 12 últimos anos, Atalaia do Norte manteve os seus cerca de 15 mil habitantes, também um sinal de encolhimento populacional do município que é o primeiro porto fora da terra indígena, no lado brasileiro.

Desde o assassinato de Bruno e Dom, lideranças locais são unânimes em apontar que quase nada mudou em relação à estrutura oferecida na região para proteger os indígenas e para derrubar o crime organizado que se beneficia da ausência do Estado - e, cada vez mais, da ausência dos próprios indígenas.

Os números são vistos como indícios de um movimento migratório de esvaziamento, mas com exatidão questionada por gestores dos municípios afastados dos grandes centros. As dificuldades de acesso e a pouca estrutura dos recenseadores, na visão de prefeitos e secretários, não detectaram com precisão os fenômenos dentro de áreas como a do Javari, do tamanho de Portugal. Além disso, ainda existe um número indefinido de indígenas isolados na região sobre os quais ainda pouco se sabe.

A vida no 'peque-peque'

Luiz e Sônia Kanamari, da aldeia Bananeira, atracaram a canoa que aloja 11 pessoas há três semanas. Entre os seis filhos, Aurora, recém-nascida. A maioria entende o português, mas nem todos conseguem se expressar na língua neolatina.

"Viemos pegar um dinheirinho, a pensão da mãe, os benefícios e comprar açúcar, sabão e sal. Depois, colocar gasolina e subir. A sobrinha adoeceu, está com anemia. Mas agora está bem, está gorda", contou Luiz. A viagem de volta leva seis dias. A depender da aldeia, pode durar dez ou mais.

No período em que vivem em Atalaia, os indígenas de aldeias do Vale do Javari ficam em vulnerabilidade extrema. Não têm água limpa nem onde preparar alimentos de forma adequada. O tamanho e o conteúdo das panelas são incompatíveis com a quantidade de bocas. Doações de botijas de gás e insumos básicos, como pão e arroz, enganam a insegurança alimentar das famílias com pessoas de todas as idades, de idosos a crianças magras de barrigas salientes. É comum que crianças terminem com infecções graves ou mesmo padeçam.

Atalaia do Norte não tem uma agência da Caixa. Quem não possui o cartão que permite os saques na lotérica da cidade precisa ir ainda mais longe, até Tabatinga, principal cidade da região e uma das mais violentas do interior do Amazonas. A falta de tradutores no banco capazes de atender membros de todas as sete etnias conhecidas do Javari é um dificultador. A burocracia é mais complicada para quem não entende bem a papelada exigida nem pode ser atendido no idioma nativo.

Por outro lado, ter a documentação completa e o cartão do programa social não é garantia de facilidades. Alguns comerciantes locais travam os cartões de benefícios sociais de indígenas e viram os únicos vendedores, a preços inflacionados. O esquema do comércio foi citado pela primeira vez em relatório à polícia elaborado pelo indigenista Bruno Pereira.

Além de serem vítimas de uma variedade de violências, os indígenas ficam expostos ao assistencialismo. O poder público não leva os serviços administrativos até as aldeias e todos os anos centenas de indígenas precisam viver temporadas nas cidades. As doações da prefeitura são garantidas aos mesmos assistidos que se tornam eleitores nas disputas municipais.

O alcoolismo é outra face visível desse êxodo. A atração pelas igrejas evangélicas, mais uma. Sem autorização para entrar no Vale do Javari, pastores evangelizam índios que surgem na cidade para que estes levem a mensagem e regressem com outros convertidos. A catequização é vista com preocupação por lideranças locais.

O interesse é o de esvaziar as aldeias em nome da fé dos brancos. Os templos evangélicos existem às dezenas na pequena Atalaia do Norte, inclusive liderados por estrangeiros. Um casal de pastores norte-americanos é célebre na cidade, mas ambos se recusaram a dar entrevistas para explicar motivações, crenças e propósitos.

Há três anos na cidade, o indígena Burano Shabac Mayoruna, 24, tem na parede da casa de madeira onde vive um conjunto de passagens bíblicas e cumprimentos evangélicos que lhe foram ensinados. Tudo está em português, apesar de livros do Novo Testamento também já serem oferecidos em sua língua materna.

"Na aldeia tem escola até o Ensino Fundamental. Muitos jovens vêm porque não tem como terminar o Ensino Médio e ter profissão. A gente perde os anos, não dá pra terminar cedo", diz o mayoruna.

O jovem tenta se capacitar como técnico em enfermagem por acreditar que o ofício será útil na floresta, para onde diz que pretende voltar um dia, depois de formado.

Enquanto providencia o diploma, trabalha durante a semana como tradutor do atendimento do Cadastro Único. Fluente no mayoruna, no matis e no português, Burano também entende a língua dos marubo e dos korubo. Cabe a ele receber e orientar outros nativos que chegam à cidade em busca de benefícios sociais. Aos finais de semana, ele faz bicos de marcenaria e dedica-se à igreja.

"Jesus nos dá fortaleza, força, conhecimento", afirma. "Eu vim somente para aprender. Formado eu gostaria de voltar para a aldeia, não morar aqui. Como saí da aldeia, tenho que voltar para compartilhar conhecimento da cultura do branco", frisa.

É comum que indígenas saiam das aldeias para estudar e não voltem mais, especialmente aqueles que cresceram com algum contato com brancos e que foram atraídos pelo mundo que lhes aparece pelo celular e pela televisão. A opção de viver as injustiças das cidades soa mais atraente do que a de lidar com a dureza das aldeias.

Aos 13 anos, Bushe Matis deixou pais e irmãos na aldeia Aurélio e seguiu para Atalaia do Norte com um tio, levado por uma ONG internacional para uma capacitação como agente de saúde. Aos 35, nunca mais voltou a viver como seus antepassados.

"Quando a gente já nasceu olhando as culturas dos brancos, tem que ter educação boa. Antes, o indígena era nômade, tinha uma roça aqui e outra ali. Ia plantando e descia colhendo. Agora não é mais assim. Então precisa de uma estrutura pessoal, barcos, motores, precisa de uma camisa. Para ter isso é de que forma? Tem que correr atrás de alguma coisa, de um conhecimento. Já que estamos contactados, precisamos usar a tecnologia do branco, temos que buscar conhecimento, capacitação, formação, trabalho", afirmou. Mas conseguir trabalho na região é um problema. Ouça:

A mudança de Bushe para a cidade ocorreu nos idos de 2000, época da demarcação da terra indígena Vale do Javari, no governo de Fernando Henrique Cardoso. A medida gerou animosidades com ribeirinhos e moradores da cidade. Com a demarcação, o território estava formalmente "trancado" para a exploração dos brancos, que reclamaram de prejuízos e passaram a não ver com bons olhos os nativos na cidade.

"Eu nem andava na rua, senão era surrado. Depois de um tempo, Atalaia viu que demarcação foi boa, porque coibiu colombianos e peruanos que tinham mais dinheiro para explorar. A cidade aproveita o entorno da terra indígena. Então passaram a entender que tinha que tratar o índio melhor"
Bushe Matis, liderança indígena do Vale do Javari

Na cidade, um pastor batista foi importante na adaptação de Bushe. O indígena conta que recebeu ensinamentos sobre a importância do trabalho e da família, e ainda sobre a importância de ir para longe do álcool. "Quando eu estava sem saída, a quem recorrer?" Depois, incomodou-se com a proliferação de diversas igrejas diferentes e concluiu que era melhor afastar-se de todas.

Em seguida, Bushe se aproximou de antropólogos e pesquisadores estrangeiros que decidiram bancá-lo em uma faculdade de Administração em Goiânia (GO). Formado, não conseguiu trabalho e voltou para Atalaia, onde cria os cinco filhos. Quatro homens e Maria Vitória, de 1 ano.

"Nessa região do interior do Amazonas é muito difícil. Não tem empresas legalizadas, com CNPJ, não tem algo que precise de uma mão de obra. As únicas coisas são os serviços, a prefeitura e a Funai", explica.

Hoje, Bushe Matis trabalha como coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), entidade não governamental que atua na região e para a qual Bruno Pereira prestava serviços quando foi assassinado.

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