Indígenas abandonados pelo Estado brasileiro

O Globo - https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2022/11 - 22/11/2022
Indígenas abandonados pelo Estado brasileiro
'Com a cabeça a prêmio por defender a minha existência e a de meus parentes, sinto-me injustiçado'

Por Eliésio Marubo
22/11/2022 00h10 Atualizado há 10 horas

Buscar a Justiça diante de uma atrocidade cometida não é uma tarefa simples. O que é evidente para quem sofre não o é para quem se ocupa de julgar. Como advogado, compreendo a dificuldade de um juiz. Mas, como um indígena com a cabeça a prêmio por defender a minha existência e a de meus parentes, sinto-me injustiçado e abandonado pelo Estado brasileiro.
Esse sentimento não é de agora. Em 2019, o assassinato do servidor da Funai Maxciel Pereira dos Santos, morto a tiros em Tabatinga, já era a constatação que o Vale do Javari estava dominado por esquema criminoso. O caso segue em investigação pela Polícia Federal, com características de ação do crime organizado. No ano seguinte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), impôs medidas cautelares ao Brasil em prol da proteção dos parentes mundurucu, ianomâmi e ye'kwana, em razão do garimpo ilegal em suas terras.
No último dia 12, a CIDH entendeu que a minha vida e a de mais dez pessoas que fazem parte da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), da qual sou coordenador jurídico, estão em grave risco, e solicitou proteção ao governo brasileiro. O pedido foi feito em julho, no mês seguinte ao assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips.
A CIDH já havia solicitado ao Brasil as mesmas providências em relação ao assassinato de Bruno e Dom, vítimas de uma emboscada enquanto navegavam pelo Rio Itacoaí, no Vale do Javari, em 5 de junho. Amarildo da Costa, Oseney da Costa e Jefferson da Silva foram presos e denunciados pela participação nos assassinatos. Eles só serão ouvidos em juízo entre os dias 22 e 24 de janeiro de 2023.
Rubens Villar Coelho, o Colômbia, suspeito de ser o mandante dos crimes, foi preso ao se apresentar à Polícia Federal portando documentos falsos. Foi expedido contra ele, também, um mandado de prisão por associação armada e crimes ambientais. Rubens pode ter relação com a organização criminosa, atuante na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, que lava dinheiro do narcotráfico por meio da pesca ilegal. Porém, após ter pago fiança de R$ 15 mil, cumpre prisão domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica, em Manaus.
Em despacho, o juiz federal Fabiano Verli entendeu que a acusação não resultaria na prisão do acusado, pois, para o magistrado, "crime de associação armada, nada leva a pena muito maior do que dois anos, se tanto. Ele sairia livre de reclusão efetiva. É o Brasil". Enquanto isso, a Univaja paga por segurança privada para que ninguém de nossa equipe seja assassinado como Bruno e Dom.
Paralelamente, no último dia 9, o grupo de trabalho criado pela presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber, apresentou um relatório final que estabelece o acompanhamento da ação penal sobre o assassinato de Maxciel, Bruno e Dom pelo Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão.
A Comissão Arns, em recente relatório, constatou o que denunciamos há tempos: que vivemos sob o jugo de narcotraficantes, garimpeiros, madeireiros e grileiros, sendo que desde 2019 com a total conivência do Estado brasileiro. A entidade recomenda, ainda, que o CNJ atue com a Justiça Federal para a elucidação dos assassinatos, uma vez que o processo até o momento não caminha para a identificação de um mandante. O principal suspeito, o Colômbia, conhecido na região por seu envolvimento com ações ilegais, sequer figura como investigado.
Somos 26 povos originários - 19 isolados, e dois de recente contato - vivendo na Terra Indígena Vale do Javari, a segunda em extensão do Brasil, com 8,5 milhões de hectares. Aguardamos a definição do presidente eleito em relação às competências do futuro Ministério dos Povos Originários, para que possamos exercer plenamente o direito de viver nas terras dos nossos ancestrais, como prevê a Constituição. Que o novo mandatário e seu ministério, junto com a Justiça, nos ajude a esclarecer quem mandou matar Maxciel, Bruno e Dom.

*Eliésio Marubo é procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari

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