'Gestão lamentável, para não dizer que é criminosa', afirma indigenista sobre a Funai

A Crítica - https://www.acritica.com/manaus - 08/11/2022
'Gestão lamentável, para não dizer que é criminosa', afirma indigenista sobre a Funai
Amigo de Bruno Pereira, o indigenista Carlos Travassos dá sequência a trabalho realizado no Vale do Javari. Em entrevista ao A CRÍTICA, ele fala sobre o cenário de insegurança da região e critica a gestão da Funai

Waldick Junior
waldick@acritica.com
08/11/2022 às 09:52.

Servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai), Carlos Travassos dá continuidade ao trabalho que antes era realizado pelo indigenista Bruno Pereira, assassinado com Dom Phillips em junho deste ano, no Vale do Javari (AM).
Em entrevista para A CRÍTICA, ele destacou a falta de segurança e a deficiência na atuação do poder público na região. Também chamou de "lamentável para não dizer criminosa" a gestão de Marcelo Xavier, indicado de Bolsonaro, à frente da Funai.
Com conhecimento da região e experiência na atuação junto a povos isolados, Carlos foi convidado pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) - mesma em que Bruno atuava - para dar continuidade ao trabalho. Leia a entrevista completa abaixo.
Perfil:
Nome: Carlos Lisboa Travassos
Idade: 42 anos
Estudos: Geografia (PUC/PSP)
Experiência: Atuação profissional na área de gestão ambiental e territorial de terras indígenas na Amazônia Legal, e de salvaguarda de povos indígenas isolados.

Como foi o seu processo de construção enquanto indigenista?
Depois que me formei em geografia, acabei indo trabalhar na Funai, na região do Vale do Javari, em 2007. Foi a minha primeira experiência com povos indígenas na Amazônia. Eu já tinha estado na região antes, mas não profissionalmente. Nesse momento, ingressei na Funai dentro de um trabalho bem específico, que é a proteção de povos indígenas isolados e de recente contato, então, acabei depois de anos saindo do Vale do Javari e indo para o Purus, no médio Rio Purus, onde fiquei mais dois anos. Depois assumi a coordenação de indígenas isolados em Brasília, conhecendo várias regiões da Amazônia Legal. Após um período na Funai, comecei a fazer consultorias para organizações indígenas que estavam se formando, preocupadas com o seu território. Pude contribuir com povos da Amazônia Legal, do Maranhão, e tinha contato constante com a Univaja, que fazia um trabalho parecido no seu território, no Alto Solimões. Então, depois de acontecer essa violência imensa contra o Bruno, houve esse convite para dar esse apoio, fazer parte da equipe da Univaja.
O Bruno fazia um trabalho muito similar ao seu. De que maneira o assassinato dele e do jornalista Dom Phillips mexeu com você?
É muito impactante, porque o Bruno era um colega de trabalho, mas também um amigo, então, é difícil cair a ficha no início. É um ato muito brutal. Por mais que você tenha uma condição de trabalho muito próxima de realidades violentas, mas a proximidade que eu tinha com ele e a forma como tudo ocorreu me trouxe um impacto muito difícil de ser naturalizado. Ainda me vejo muito chocado com tudo o que ocorreu, uma sensação de perplexidade.
Como é a rotina do trabalho que você irá realizar?
É um trabalho de vigilância que já vem sendo feio pela Univaja. Uma atuação que inclui diagnóstico étnico ambiental de problemas de atuação. É obter essas informações e tentar sempre construir uma rede de trabalho junto às instituições públicas, prestar essa informação de uma forma mais qualificada, para que o poder público possa, de fato ,desempenhar ações que visem a proteção da terra indígena.
Quando você atuou no Vale do Javari, entre 2007 e 2009, já havia um clima de insegurança e de crimes ambientais, mas imagino que tenha aumentado. É isso?
Tem uma questão de maior pressão sobre o território. Você tinha invasão muito forte dentro da terra indígena. É um lugar onde se tem muita caça, muita pesca, peixes nos lagos. Hoje, você tem uma deteriorização do entorno, onde não é terra indígena, que é muito maior. As regiões já estão 'despovoadas' de caça, de peixe, você não encontra mais tracajá, tartaruga nas beiras dos rios, que não sejam dentro dessas áreas preservadas. A pressão se torna muito maior e o mercado consumidor é muito grande. O que mudou de dez anos para cá é justamente a forma como essas atividades ilegais são organizadas. Passam a ser mais profissionais, se é que pode-se dizer assim. Tem um nível de força, de recurso financeiro maior, sem falar da possibilidade de ter relação com atividades criminosas.
Uma das reivindicações de indígenas nesse e em outros territórios é a maior presença do Estado no sentido de garantia da proteção aos indígenas e aos territórios. A que você atribui essa insuficiência da presença do Estado no Vale do Javari?
Existe um problema estrutural que pode ser resolvido, é importante que se diga. É reforçar a estrutura desses órgãos na região. A Polícia Federal tem que ser fortalecida, ter um tratamento de importância naquela região. O Ibama é uma instituição que não pode estar ausente. Tem que ter um escritório do Ibama. A Funai, além de estar presente, tem que desenvolver as suas atividades, que são suas atribuições, como órgão indigenista oficial, não pode se furtar disso. E é possível fazer isso tudo. O Exército Brasileiro também, que tem dois pelotões lá na região. Tem que ser fortalecido e exercer o seu papel de segurança nacional, que está sendo nitidamente ameaçado não pelos ribeirinhos ou indígenas, mas por falta de condições, de pessoal, de equipamento.
Como você avalia a gestão do presidente da Funai, Marcelo Xavier, e da influência do presidente Bolsonaro sobre o trabalho do órgão?
É lamentável para não dizer criminosa. Vai contra o que está definido na lei. Se você pegar a Constituição, as leis específicas, estão sendo permanentemente descumpridas. Existe muita omissão, muita prevaricação. Espero que tudo isso possa ser alvo de investigação, de questionamentos, porque a Funai não vem cumprindo seu trabalho no Vale do Javari, mas, principalmente, essa direção do órgão, do Marcelo Xavier, e também do Bolsonaro, é uma política de não execução das atribuições da Funai.
Temos visto mais mortes de indígenas, algumas depois do caso Bruno e Dom, porém, com uma repercussão bem menor. Na sua percepção, o que pode explicar isso?
Infelizmente, temos muitos meios de comunicação, mas esse tema não é algo que tem um acompanhamento muito grande. Quando acontece, é muito fugaz. Você fala que o assassinato aconteceu naquele dia, mas não tem um acompanhamento mais forte sobre o que aconteceu. Também tem uma relação com as distâncias dos territórios e por uma característica da mídia de estar mais ligada aos centros urbanos.
Falando do Bruno, creio que a repercussão foi grande também porque ele tinha um trabalho muito sólido, era uma pessoa que desenvolvia aquele trabalho de formiguinha, mas feito num cenário extremamente estratégico, era uma liderança dentro do serviço público pela sua capacidade de trabalhar e de produzir resultados. Outro fator é a questão da presença do Dom Philips como vítima. Ele é um inglês que vem morar no Brasil, se apaixona por essa luta de proteção da Amazônia, passa a ser reconhecido internacionalmente pelo que via e interpretava, então, a morte dele também mostra esse lado da realidade que escancara esse cenário de violência no Brasil. Gostaria muito que todas as lideranças, os ativistas, as vítimas da violência, pudessem ser exaustivamente acompanhadas também.
Você citou o Exército anteriormente, que é uma força responsável pela proteção das fronteiras. Ali no Vale do Javari, nós temos também a presença do narcotráfico, especialmente a partir de outros países. Pela sua experiência no local, onde está a falha das Forças Armadas? por que não conseguem proteger a fronteira de maneira a impedir a atuação do narcotráfico?
As Forças Armadas precisam ser fortalecidas, o papel delas é super importante para ocupar bem essa região, uma área de fronteira, um rio grande, que é o Javari, muito largo e sujeito a alagamento, uma floresta densa. A presença dessas instituições é essencial. É um perigo não fortalecê-las, não tornar essa estrutura imponente e à altura dessas fronteiras que são binacionais, trinacionais.
A gente passou por um processo eleitoral turbulento e vimos que nos debates, nas propostas, a Amazônia não foi muito explorada enquanto tema. Houve menção, mas geralmente em relação ao desmatamento e às queimadas. A pauta 'população' e segurança da região, por exemplo, foi pouco citada. O que pode explicar a invisibilidade desses temas?
É certo que houve mais manifestação de um lado do que de outro. A presença da ex-ministra Marina Silva [com Lula], por exemplo, ela tem trazido essa pauta. Não poderia ser injusto, o próprio Lula no debate [também]. Mas, de forma geral, o tema Amazônia é muito importante e, na minha opinião, deve ser um dos principais em todos os debates. Acho que pensar na floresta sem pensar nos povos, seja na capital em Manaus ou nas terras indígenas, é impossível. Temos que pensar as populações, nos animais, em toda a biodiversidade. Também, em termos de economia. A economia do futuro prevê a importância de um equilíbrio ambiental urgente. Então, é essencial que essa pauta esteja presente nos programas de governo.

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