Sobre os saberes indígenas e as ignorâncias do branco

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/ - 23/06/2022
Sobre os saberes indígenas e as ignorâncias do branco
Repórter visita Watokiri, casa de Davi Kopenawa, na Terra Indígena Yanomami, no Amazonas

23.jun.2022 às 18h26
Leão Serva
Watoriki, Terra Indígena Yanomami (AM) e São Paulo

Havia qualquer coisa de onirico. De repente, eu me vi andando pela grande casa escura onde mora um homem mais de uma vez indicado ao premio Nobel da Paz, assistindo ao encontro entre dois brasileiros destacados da cena cultural internacional: ela, escritora e artista plástica, com obras atualmente expostas pela Fundaça~o Cartier, na França, depois de passar por Xangai, na China; ele, um filosofo best seller, tem seu livro mais recente já traduzido em diversas linguas estrangeiras. Os dois indigenas se emocionavam pelo encontro depois de muitos anos sem se ver.
A casa de Davi Kopenawa, chamada de Watoriki, numa regia~o da Terra Indigena Yanomami denominada Demini, parece um lugar de sonhos. A maloca circular, com um grande pátio interno, fica no sopé de uma rocha imensa, uma pedra unica de algo como cem metros de altura e outros tantos de largura. Perto da pedra escura, a grande casa, que abriga cerca de 150 moradores, parece um pequeno anel jogado ao cha~o.
Ehuana Yaira Yanomami também mora em Watoriki. Com formaça~o de professora, ela estudou a evoluça~o dos ritos tradicionais relacionados à primeira menstruaça~o das meninas. Esse trabalho resultou em um livro didático, sobre menstruaça~o, casamento, sexo e nascimento. "Yipimuwi Thëa~ Oni: Palavras escritas sobre menstruaça~o" foi escrito com a antropologa Ana Maria Machado e publicado em 2017 com apoio do MEC (Ministério da Educaça~o e Cultura) em uma coleça~o de livros sobre saberes indigenas na escola.
Mas a maior repercussa~o veio para seu trabalho como desenhista, dando forma visual a mitos e outros elementos da cultura yanomami. No dia em que testemunhei seu encontro com Ailton Krenak, quando visitávamos a Terra Indigena por ocasia~o da comemoraça~o dos 30 anos de sua homologaça~o, no final de maio, ela comentava frustrada que na~o tinha podido ir à França para a abertura da exposiça~o "Utopia", na cidade de Lille, onde seus trabalhos aparecem ao lado de obras de outros artistas indigenas brasileiros, como Jaider Esbell (Macuxi, morto em 2021). Poucos dias antes da estreia, Ehuana se deu conta de que tinha perdido a carteira de identidade e por isso o passaporte na~o ficou pronto a tempo de embarcar para a abertura da mostra, em 14 de maio. Ela pretende ir ver a exposiça~o ta~o logo obtenha o documento de viagem. O evento, com curadoria do antropologo franco-brasileiro Bruce Albert, fica em cartaz até o dia 2 de outubro.
No ano passado, os desenhos da professora, escritora e artista plástica já tinham sido apresentados em Xangai, na China, em mostra também promovida pela Fundaça~o Cartier.
Pouco antes do encontro entre os dois, Ailton Krenak comentava o lançamento de novas traduções de seu livro "Ideias Para Adiar o Fim do Mundo" para uma série de linguas estrangeiras, como ingles, italiano, turco, sueco e alema~o. O lider indigena tornado famoso ainda jovem por um discurso performático durante os debates na Assembleia Constituinte, que preparava a Carta de 1988, é hoje um filosofo celebrado em vários cantos do mundo.
Iniciado no movimento politico nacional ao lado de Davi Kopenawa e outros lideres indigenas no enfrentamento ao projeto do governo do general Figueiredo (1979-1985), ultimo da Ditadura Militar, que queria reduzir os direitos dos povos originais, Krenak voltava à casa de Kopenawa para a celebraça~o de uma vitoria do movimento indigena (a homologaça~o da Terra Yanomami, em 1992) e a discussa~o dos desafios colocados pelo atual governo, também de formaça~o militar, que mais de quarenta anos depois, procura reduzir os direitos assegurados aos indigenas na Constituiça~o brasileira.
O presidente da Republica costuma dizer que "os indios esta~o cada vez mais parecidos conosco". Aquele encontro de excelencias deixou claro que sonho seria se o inculto presidente fosse "cada vez mais parecido com os indigenas". Mas em verdade, ele está muito longe do Premio Nobel da Paz; é incapaz de produzir qualquer coisa relacionada às artes, muito menos para expor em Paris ou outra capital; ou quem dirá escrever livros de pensamento filosofico sobre como adiar o fim do mundo, quando todos os seus atos parecem voltados para apressar o apocalipse.


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PIB:Roraima/Mata

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