Análise: mortes de Bruno e Dom são mais do que uma tragédia. A palavra certa é crime

Valor Econômico - https://valor.globo.com/ - 15/06/2022
Análise: mortes de Bruno e Dom são mais do que uma tragédia. A palavra certa é crime
A barbárie vista neste episódio lembra o assassinato do jornalista Tim Lopes, há 20 anos, no Complexo do Alemão, no Rio

Daniela Chiaretti

15/06/2022

Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e Dom Phillips são as primeiras mortes com repercussão internacional na Amazônia desde os tiros de escopeta que mataram o líder seringueiro Chico Mendes, em sua casa, no Acre, em dezembro de 1988, e as seis balas que derrubaram covardemente a missionária Dorothy Stang, aos 73 anos, à luz do dia, em uma estradinha de terra em Anapu, no Pará, 17 anos atrás. Chico e Dorothy morreram por conflitos ligados à terra. Ao que tudo indica, Bruno e Dom morreram pelo mesmo motivo - tentar salvar a Amazônia e seus povos. E pela impunidade das centenas de outros conflitos e mortes que acontecem na Amazônia há décadas, mas nunca como agora.

É uma tragédia, sem dúvida. Mas a palavra certa é crime.

Bruno e Dom foram mortos, jogados em uma vala, corpos esquartejados e incinerados, segundo o que se noticia até agora. A barbárie lembra o assassinato do jornalista Tim Lopes, há 20 anos, no Complexo do Alemão, no Rio. Ele foi sequestrado e morto por traficantes. Seu corpo foi incinerado. Sua morte é considerada um atentado à democracia.

Os mandantes e os motivos da morte do indigenista e do jornalista serão conhecidos, espera-se. Mais rápido do que a constrangedora nota das Forças Armadas que se preocupou em enviar mensagem à imprensa dizendo que aguardava ordens superiores para mandar helicóptero e efetivo militar para a região quando o desaparecimento foi anunciado. Mais rápido do que os mais de 1.555 dias da morte de vereradora Marielle Franco - na conta incansável da jornalista Eliane Brum -, ainda sem desfecho.

A sociedade cobra a elucidação do crime

Há uma cobrança social gigante pela apuração do crime, no Brasil e no exterior. A repercussão é enorme e será avassaladora. As frases que o presidente Jair Bolsonaro vem dizendo sobre Bruno e Dom são revoltantes. Nesta visão tacanha e insensível, a culpa é das vítimas.

O governo Bolsonaro, na Amazônia, ganhou fama internacional pelas suas boiadas, pelos índices recordes de desmatamento e queimadas e pela complacência com conflitos, com rios contaminados por mercúrio, exploradores ilegais de madeira, grileiros em profusão e uma situação cada vez mais tomada pelo crime organizado, com tráfico de drogas e armas.

Pereira não é o primeiro indigenista a morrer na Amazônia. Infelizmente ao longo de décadas morreram vários, alguns no ofício do contato com povos isolados.

Mas, na mesma área, em setembro de 2019, o funcionário da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado com um tiro na nuca, em rua movimentada de Tabatinga, de tardezinha. Familiares assistiram à execução do jovem que trabalhou 12 anos em campo muito similar ao de Bruno.

O assassinato teria ocorrido em represália à atuação de Santos no combate a invasões ilegais por caçadores, madeireiros, garimpeiros e pescadores, na reserva do Vale do Javari. Ali há a maior concentração de povos indígenas isolados do mundo. Os invasores só fazem crescer enquanto o Estado se retrai e não faz o que deve fazer.

Ou espalha fake news, como a informação de Marcelo Xavier, presidente da Funai, que os dois desparecidos não tinham pedido permissão para entrar na Terra Indígena Vale do Javari. Não pediram porque não entraram. Não tinham que pedir.

Há um novo flanco no crime de Bruno e Dom, a pesca ilegal e gigante de tracajás e peixes. Abastece cidades na Colômbia e no Peru. Há suspeitas de que lava dinheiro do tráfico. Nas comunidades da região, pequenos pescadores vivem em taperas, mas têm redes caras e bons barcos. Todos se conhecem.

"Uma pessoa como Bruno faz uma falta absolutamente radical para um órgão indigenista e para o próprio Estado brasileiro. Porque são poucos que têm disposição em trabalhar em um front como o Javari e, sobretudo, com esta experiência acumulada, que não é brincadeira, não é transferível e não se aprende na escola", diz o ex-presidente da Funai Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA.

Exército

Indigenistas e pesquisadores estranham a falta de presença do Exército na região, que tem que cuidar da área de 150 quilômetros de fronteira. "Parece que estão assistindo a um filme, inertes como se este drama não fosse com eles", diz uma fonte.

Dom Phillips usava as palavras para defender a Amazônia. Seu amigo Jonathan Watts, editor do "Guardian", disse que era "um jornalista magnífico, contribuidor regular do jornal e um grande amigo."

Conhecia bem a Amazônia e escrevia um livro. Queria contar como os índios estão aprendendo a monitorar a terra indígena, com drones e tecnologia de localização precisa, enquanto o Estado, que tem por responsabilidade fiscalizar invasores e tirá-los de lá, não faz nada.

O britânico Dom Phillips é o primeiro jornalista a morrer na floresta. A ele, há alguns anos, Bolsonaro disse que "a Amazônia é do Brasil, não é de vocês".

O Brasil nunca conseguiu ter soberania sobre a Amazônia. O temor dos militares é verídico, só está no alvo errado. Quem parece estar dominando a área é o crime organizado. "Tá tudo dominado", diz um conhecedor da região.
PIB:Javari

Related Protected Areas:

  • TI Vale do Javari
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.