O que a floresta já me ensinou

OESP - http://brasil.estadao.com.br/blogs - 30/06/2016
O que a floresta já me ensinou

Maria Fernanda Ribeiro
30 Julho 2016 | 16h29

Já são 20 dias em plena floresta Amazônica. Sem saber o que me esperava, mas cheia de expectativa, embarquei naquele voo da Gol que me trouxe ao Acre, esse lugar que não é um estado federativo apenas, mas sim um passaporte que nos dá livre acesso para uma viagem às nossas origens. Não me sinto mais como se estivesse apenas em um roteiro de férias. Aos poucos me enxergo como parte desse vasto mundo que por toda a minha existência eu praticamente ignorei. Mas cá estou para me redimir de tamanha omissão.
Ainda não sinto falta de casa. Ainda não sinto falta de nada do que tenha ficado para trás. Mas estou consciente que isso pode acontecer. Cedo ou tarde. Muitas vezes me falta vontade de escrever o que tenho experimentado por aqui. É que descobri rapidamente que existe um abismo social e cultural entre esse Brasil do qual escrevo e outras partes dele. É tudo tão diferente que seria improvável alguém ler sem jogar as palavras na fogueira dos julgamentos e preconceitos. Fogueira que muitas vezes foi acesa muito antes de o novo chegar, baseada em convicções e suposições.
Darcy Ribeiro já falava sobre a estratificação social, que separa e opõe os brasileiros ricos e remediados dos pobres e como os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença. Aqui a estratificação social também significa união, pois o censo de coletividade e solidariedade é intrínseco a essas pessoas que vivem na floresta e necessitam dela para sobreviver. Muitas vezes demoro para escrever porque as palavras parecem esperar o tempo passar para se solidificarem e se tornarem mais claras e fiéis aos meus sentimentos. Também temo ser leviana ou desonesta. Comigo e com as pessoas que tenho trombado pelo caminho.
Nesses 20 dias já naveguei por dois rios (Gregório e Crôa), conheci duas etnias indígenas (Puyanawa e Yawnawa), variados igarapés e uma comunidade da Igreja do Santo Daime, a Flor da Jurema, localizada no rio Crôa. Ainda há muito para ver, mas esses dias já foram suficientes para eu aprender que a pinça do canivete não serve para tirar a sobrancelha, que você vai passar mal nos primeiros dias e talvez de novo e de novo até o seu corpo se acostumar, que os mosquitos são resistentes aos mais potentes dos repelentes, que as canoas viram e é preciso embalar as mochilas em sacos de plásticos resistentes, que o calor durante o dia pode ser arrebatador e que o frio chega para desassossegar as madrugadas, que uma lanterna é fundamental para ter autonomia e mobilidade, que energia elétrica não é para todos, que internet é luxo, que telefone via satélite é mais ainda e que as camisetas brancas que encheram a minha mochila são a mais pura perda de tempo.
Entendi que comer de colher é digno e com a mão igualmente se preciso for, que nem sempre é necessário ter uma mesa para as refeições, que o uso da Ayahuasca aqui não é tabu e que faz parte de uma cultura milenar, que a selva tem um tempo que é só dela e que as pessoas são gentis, solidárias e trabalham duro.
A previsão era a de ficar no Acre um mês e meio no máximo, mas já percebi que ultrapassarei o tempo estimado. Me pergunto diariamente como um estado pode ser tão pequeno e tão imenso ao mesmo tempo. Em cada comunidade que me despeço, um sentimento profundo de tristeza me acomete, como se eu estivesse vivendo uma existência provisória, com amizades provisórias e um futuro que teima em se esconder. No entanto, aprendo segundo a segundo com essas pessoas pouco dotadas de conhecimento, mas com uma sabedoria que transborda e faz com que eu me redima de ter colocado um dia no mesmo balaio intelectualidade e inteligência.
A jornada continua
Deixo mais uma vez a minha base em Cruzeiro do Sul para ir até um lugar longe, longe mesmo, na divisa ao Sul com o Peru. Vou, acompanhada da Associação SOS Amazônia, conhecer a Resex (Reserva Agroextrativista) Alto Juruá e o projeto de proteção de quelônios que eles desenvolvem no local.
Criada em 1990, a Resex Alto Juruá foi a primeira do Brasil, mas a atividade extrativista local iniciou-se por volta de 1890, com imigrantes vindos principalmente do Nordeste, e tendo passado por diversas fases de acordo com o ciclo da borracha. Ao longo do último século a população local tem se ocupado com atividades de subsistência (agricultura, caça, pesca, e artesanato), e com atividades comerciais (borracha), de acordo com informações do ISA (Instituto Sócioambiental). Com o declínio do comércio da borracha na década de 80 a agricultura ganhou força.
Para nos situarmos na história, a ideia de Reserva Extrativista surgiu em 1985 durante o 1o. Encontro Nacional dos Seringueiros como uma proposta para assegurar a permanência dos seringueiros em suas colocações ameaçadas pela expansão de grandes pastagens, pela especulação fundiária e pelo desmatamento. O conceito surgiu entre populações extrativistas a partir da comparação com as reservas indígenas e com as mesmas características básicas: as terras são da União e o usufruto é das comunidades. Uma espécie de reforma agrária apropriada para os moradores da floresta.
Para chegar até lá pego um táxi aéreo até a cidade de Marechal Thaumaturgo e de lá mais umas oito horas de canoa navegando pelo rio Juruá até a Foz do Breu. Fico, mais uma vez, sem contato ou conexão por uns dez dias. Amigo meu disse que talvez ficar sem internet fosse mais difícil do que parar de fumar. Gostaria de usar esse espaço para dizer a ele que não, que a conexão da floresta é capaz de suprir toda a abstinência, relembrando os tempos em que vivíamos sem internet e tudo ia bem. Lembram? Pois é.
Do mais, a seca continua severa por aqui e já me alertaram que devo me preparar para as queimadas e o tempo seco. Assim que a tecnologia permitir, volto com mais histórias da floresta e seus guardiões. Até.

Aqui no mapa vocês conseguem ver onde fica a Resex Alto Juruá: https://goo.gl/maps/2T1a2PT7Hk92

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