Médica guerreira em terra indígena

Secretaria Municipal de Saúde/Prefeitura de São Paulo (São Paulo - SP) www.prefeitura.sp.gov.br - 14/07/2015
A paulistana Nicole trabalha no Xingu, no Programa Mais Médicos e há cinco anos atende em duas aldeias indígenas da zona Sul


"Na nossa medicina, a medicina dos brancos, temos a mania de ser soberanos, de saber de tudo, de achar que a sabedoria popular não vale nada; já na saúde indígena não dá para pensar assim, não! Se [o médico] vier com esse pensamento, como alguns colegas que passaram por aqui [na aldeia], não funciona". Assim, a paulistana Nicole Bertazzola Gracitelli Steigerwald, médica da Unidade Básica de Saúde (UBS) Vera Poty, define sua filosofia de trabalho no atendimento dos pacientes da etnia Guarani-Mbya. A UBS está encravada na Terra Indígena Tenondé-Porã, no extremo Sul da Capital, às margens da represa Billings. Na aldeia vivem 1175 indígenas - metade crianças.

Nicole, de 31 anos, começou a atuar na aldeia em julho de 2010. Três anos depois, especializou-se em Saúde Indígena pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Passou então a ser médica apoiadora do Projeto Xingu, tocado pela universidade federal na região. Também optou por acumular a tarefa de supervisionar seis profissionais cubanos que atuam no Distrito Indígena de Redenção, no sudeste do Estado do Pará, pelo Programa Mais Médicos.

O trabalho é árduo. A jornada de trabalho da médica se estende por 16 horas semanais, divididas entre as terças e quintas, no atendimento nas aldeias Tenondé-Porã e Krukutu, ambas em Parelheiros, e três outras recentemente formadas em terras já pertencentes ao município de São Bernardo do Campo (região do ABC) - Brilho do Sol, Guarapajú e Kalipau. Para os indígenas desta etnia o limite entre municípios inexiste, pois são nômades.

"Aqui [na Aldeia Tenondé-Porã] é a UBS, mas tem um anexo que fica lá na Aldeia Krukutu. A gente acaba fazendo atendimento lá também, dividindo um pouco a equipe. Só que aqui a população é muito maior e a demanda também. Quando precisam, eles vêm para cá em um carro que fica à disposição da comunidade", diz Nicole.


Desafios


Um dos desafios enfrentados por ela relaciona-se à comunicação. "Não falo guarani, que é uma língua muito difícil para nós; mas aprendi as palavras mais importantes para os atendimentos médicos, como pedir para sentar, deitar, abrir a boca e respirar. As crianças até os seis anos de idade não falam uma palavra em português", disse Nicole.

A "diálogo" entre as medicinas tradicionais e a indígena está tão presente no dia a dia dos profissionais que atuam na unidade que, se for preciso, o próprio pajé traz o paciente para uma avaliação com a médica. "É preciso saber conviver. Tenho uma ótima relação com os pajés e eles comigo e com todos aqui da UBS. Geralmente, os idosos procuram primeiro o pajé, que faz a conduta dele, com três dias de tratamento com ervas, massagem, uso da fumaça que sai do cachimbo. Caso ele diga que é doença de branco, o doente vem passar em consulta comigo. Se for preciso, são feitos dois tratamentos ao mesmo tempo. Quando é uma doença espiritual, o pajé trata e a melhora vem", afirma Nicole, que pondera: "Quando os pajés se deparam com uma situação grave, nos chamam para ajudar e muitas vezes atendemos juntos".

Patrícia dos Santos Guarani, de 24 anos, mãe de Melissa, de 9 anos, Otávio, de 7 anos, e Chiara, de 4 anos, é um exemplo de uso dos cuidados ancestrais em harmonia com o atendimento prestado por Nicole. "Venho aqui quando as crianças estão doentes. Às vezes trago as crianças com tosse, gripe. Também faço meus exames aqui. Acho muito importante cuidar da saúde", diz. Questionada se prefere a medicina dos brancos ou a de seu povo, a guarani mbya responde de pronto: "Não vejo problema em passar com o pajé e aqui na UBS".


'No começo foi difícil'


Entretanto, no início da convivência, segundo a médica, um certo receio por parte dos guarani mbya chamava a atenção. "No começo foi difícil, pois eles são desconfiados, até o momento em que consegui estabelecer vínculo. Depois que se estabelece, é tudo muito lindo. É preciso entender um pouco da cultura deles para poder respeitar, muitas vezes há situações difíceis de lidar, de entender, mas, a partir do momento que você estuda, principalmente antropologia, aí o atendimento se tornam mais fácil", afirma a médica.

Nicole incorporou muito da cultura indígena à sua vida profissional. "Aprendi muito com eles, desde o parto aos cuidados com as crianças, o modo de carregar, a alimentação, a dedicação, até a maneira de me comportar. Mas também ensinamos muitas coisas para eles. A sabedoria indígena é incrível. Tenho uma amizade pessoal com algumas pessoas, com algumas lideranças, participo de rituais. Nem penso em quebrar esse vínculo, pois faria mal para os dois lados", diz a médica.


Saúde Indígena, o sacerdócio da medicina e o SUS


Nicole avalia que a saúde indígena no Brasil, como a atenção básica, sofre com a falta de profissionais. "Os médicos amigos meus e os colegas em geral não se interessam por saúde indígena porque nem imaginam que tem aldeia em São Paulo. Eles se interessam muito por estar próximo das metrópoles, apenas", lamenta.

Para ela é possível reformar a medicina mudando paradigmas. "Os médicos se formam e vão direto cursar as especialidades. Se esquecem de que faltam médicos para atenção básica, generalistas, clínicos gerais, que entendem de tudo um pouco, e também faltam médicos de famílias. Aqui no Brasil as escolas formam muitos especialistas, em detrimento do resto. Na atenção básica, onde conseguimos diagnosticar 80% das questões mais simples, isso também ocorre", avalia.

Apesar dos problemas, a médica confia na medicina e na melhoria substancial do Sistema Único de Saúde (SUS). "Acredito no SUS. Estou tentando contribuir para que funcione. Já fui atendida no SUS por profissionais qualificados e que são os mesmo que trabalham em hospitais particulares. Falta [às pessoas] conhecimento, contato com a realidade fora de sua zona de conforto. A população é diferente em cada classe social. Muitos não sabem o que é o SUS, não sabem qual é a dificuldade de se criar uma família com Bolsa Família. É preciso ampliar conhecimentos, experiências de vida", afirma.

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/noticias/?p=199421
PIB:Sul

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