O segredo dos guaranis que ainda habitam o Rio

O Globo, Rio, p. 20-21 - 25/05/2014
O segredo dos guaranis que ainda habitam o Rio
Índios, cuja presença no estado não era reconhecida até 1972, resistem espalhados por sete aldeias

Emanuel Alencar
Ludmilla de Lima

RIO - Cai a noite no sopé do Morro da Forquilha, no Parque Nacional da Serra da Bocaina, em Paraty. Aos poucos, os índios entram numa casa de pau a pique, com telhado de palha e chão de terra, erguida pelos próprios guaranis. Apenas duas lâmpadas frias iluminam o ambiente. Não há janelas. Mulheres usam um instrumento de bambu para extrair um som oco. A dança é ritmada: um passo para frente e outro tímido, para trás. Nírio da Silva, filho do cacique, conduz o ato com um violino. Em duas canções, o agradecimento a Nhanderu-tupã - o mito guarani da criação -, e ao cacique e pajé da aldeia. A cerimônia, na aldeia de Araponga, se repete sempre após o pôr do sol em outras comunidades indígenas do estado. Hoje são sete, onde vivem entre 750 e 800 índios guaranis, o equivalente a 0,004% da população fluminense. Quatro aldeias estão localizadas em Paraty, uma em Angra dos Reis e duas, as mais recentes, em Maricá.
Demarcada em fevereiro de 1991 pelo governo federal, a aldeia indígena de Araponga, em Paraty, é a mais isolada de centros urbanos. Por isso, ainda preserva os hábitos dos mbya-guarani. Abriga 54 indígenas que ocupam um vale de 213 hectares e convivem com as amarras de estarem numa unidade de conservação de proteção integral, o que, na teoria, impede a presença humana em seus domínios. Não conseguem, por exemplo, pleitear melhorias na estrada de terra de sete quilômetros, que liga a aldeia ao distrito de Patrimônio, centro urbano mais próximo. A caça também é vedada. Originário de Itapiranga, em Santa Catarina, o cacique da aldeia, Augustinho da Silva, chegou a Paraty há 25 anos. Ao receber repórteres do GLOBO, desanda a enumerar as dificuldades cotidianas da aldeia.
- Desde que estamos aqui, já tivemos seis prefeitos. E ninguém ajuda. Não podemos caçar e nem cortar nenhuma árvore. Então, que o governo nos ofereça cestas básicas. Não temos banheiros nem material de aula para as crianças... Há dois anos, a cidade tinha três carros para carregar os doentes nas tribos, hoje só tem um - diz, aos 93 anos, num português titubeante.
Augustinho dá sequência à saga dos guaranis no Rio, que teve início na década de 40, quando eles começaram a chegar pela Serra da Bocaina, em travessias feitas a pé. Os guaranis, do subgrupo mbya, vinham do Paraná e Santa Catarina, como conta o antropólogo José Bessa, professor de educação indígena da Uerj. Somente em 1972, com a abertura da Rodovia Rio-Santos, eles foram "descobertos" pelos fluminenses e o restante do Brasil. Até então, não havia oficialmente índios no Rio desde 1888, e os guaranis não faziam parte dos grupos que tinham habitado o estado.
- Os guaranis têm o hábito de migrar, o que tem um fundo religioso. Vão em busca da chamada terra sem males, que é a terra que eles, por muito tempo, acreditaram existir em algum lugar no leste do Brasil. O Serviço de Proteção ao Índio, depois Funai, não reconhecia a existência de tribos no estado de 1888 a 1972 - explica Bessa, responsável pela estimativa sobre o total de índios no estado, que flutua devido às características dos guaranis.
A aldeia Araponga é comandada com rigor por seu tutor. Se uma índia se apaixonar por um homem branco, ou vice-versa, o casal deve deixar a comunidade. Por lá é proibido jogar carta, ingerir bebida alcoólica, fumar "cigarro de branco". Às mocinhas só é permitido o uso de saias compridas. E nada de colorir o cabelo ou usar piercing, avisa o cacique Augustinho:
- O índio diz: "Ah, mas eu tenho que beber minha caipirinha". Quer beber? Tudo bem. Mas fora daqui. Aqui, não pode.
Bolsa família e venda de artesanato
Não há estudos sobre a renda per capita local, mas as 12 famílias de Araponga contam com o auxílio do programa Bolsa Família. As roças de feijão, batata doce, milho e mandioca não garantem a subsistência dos guaranis. Idas ao mercado, apesar das dificuldades em função do terreno acidentado e da estradinha em condições precárias, são imprescindíveis. Cada família compra seus próprios alimentos. A energia, fornecida por um painel solar, é insuficiente para eletrodomésticos. Quando alguma entidade doa alimentos, o banquete é comunitário.
Dinâmica semelhante da aldeia de Paraty-Mirim, formada por 36 casas de bambu, barro e madeira. Também homologada pela União, a aldeia padece com problemas de saneamento - não há banheiros e o lixo se espalha pelos quintais -, e os índios pedem melhores condições da Escola Estadual Guarani Tava Mirim. Ao contrário da Araponga, a Paraty-Mirim aceita não-índios. O cacique e pajé Miguel Benite, de 113 anos, afirma que "não há problema em receber brancos na aldeia", desde que "eles tenham o interesse em ajudar a causa indígena". Para o cacique, nada que afete a tradição.
A maior aldeia fluminense, Tekoa Sapukai Bracuí, em Angra dos Reis, tem 430 pessoas em mais de 2 mil hectares. Com acesso pela Rio-Santos, a Bracuí dispõe de um posto de saúde bem equipado, escola bilíngue e energia elétrica. Em saneamento, as coisas não vão tão bem, embora oito banheiros de alvenaria sejam erguidos, com verba da União. E há outros 42 previstos. Como em outras do Rio, na aldeia Bracuí, alguns adultos não falam o português, só guarani.


Em Maricá, aldeia luta pelo direito de ocupar terreno
Um grupo de 63 guaranis, com origem no Sul do Brasil, ocupa, há cerca de um ano, uma área de restinga em São José do Imbassaí, Maricá. A Aldeia da Mata Verde Bonita ou Tekoa Ka'guy Ovy Porã se estabeleceu num terreno privado que está no centro de uma disputa, ainda sem definição.
Na aldeia, os moradores pescam diariamente no Canal de São José e plantam milho, aipim, feijão e plantas medicinais, como a guiné. A cozinha é comunitária. Os índios sobrevivem também com ajuda do Bolsa Família, recebido pelas mulheres, e do cartão Mumbuca, da prefeitura, que oferece R$ 70 por mês para ser usado em compras no comércio local. Hoje, 15 guaranis são beneficiados com o cartão, mas a prefeitura diz que todos serão cadastrados no programa. Mesmo com a situação da terra indefinida, a Secretaria de Direitos Humanos de Maricá estuda fazer obras na rede de água e esgoto e negocia a instalação de energia no local. Já a Secretaria de Educação quer enviar um professor da rede municipal para dar aulas para os índios, que hoje só estudam guarani.


Visita ao cotidiano de mais de 50 etnias
O carioca que quiser mergulhar na história indígena brasileira não pode perder a exposição "Linhas e línguas, Curt Nimuendajú e os índios do Brasil" sobre o etnólogo alemão que traçou o mais minucioso mapa desses povos no país. A mostra estará no Baukurs Cultural, em Botafogo, até 28 de agosto.
Alemão de Jena, Curt Unckel viveu mais de 40 anos entre índios brasileiros relatando, com detalhes, seus costumes, riquezas materiais e línguas, em um trabalho que resultou na catalogação de mais de 50 etnias. O resultado desse trabalho está na exposição iconográfica e audiovisual, organizada pela produtora cultural Simone Melo, que tem no currículo vários outros eventos do Museu do Índio. São fotos e desenhos do etnólogo, além da instalação, em escala real, do mapa etno histórico dos índios e das suas línguas no Brasil, na primeira metade do século XX. A entrada é gratuita.


Uma saga que atravessou séculos
Se hoje os índios que habitam o estado não passam de 800, no século XVI, eram milhares. É impossível precisar um número. Estatísticas do IBGE dizem que poderiam somar 97 mil. O número, no entanto, é considerado conservador pelo historiador Marcelo Lemos, especialista em história indígena e doutorando da UFF: ele calcula que a população podia ultrapassar os 150 mil.
- Nós já identificamos, no século XVI, 107 aldeias indígenas, a maioria esmagadora no litoral fluminense. A maior parte delas tamoias e temiminós. Acredito que tínhamos em todo o território do atual estado de três a quatro vezes mais aldeias do que as que levantamos nas fontes. Trabalhando com um número médio de 500 pessoas nessas aldeias, teríamos de 150 mil a 200 mil índios no século XVI - analisa.
Quando os europeus chegaram, viviam no litoral do Rio, entre Angra dos Reis e Cabo Frio, tupiniquins, tupinambás, tamoios e temiminós, como diz Ronald Raminelli, professor de história do Brasil colonial da UFF e autor do livro "A Era das conquistas" (FGV). Os guaranis, nesse momento, estavam no litoral de São Paulo e no Sul do Brasil.
E qual foi o destino dessas etnias no Rio? Raminelli conta que parte da população indígena que vivia no estado morreu em epidemias:
- Houve várias epidemias logo após a fundação da cidade. E, antes mesmo disso, o Hans Staden (aventureiro alemão feito prisioneiro pelos tupinambás) conta que havia muitas febres, que a comunidade uma vez ficou toda doente, morrendo vários índios. As histórias das epidemias são narradas desde os primeiros contatos - diz.
O índios que habitavam o Rio eram guerreiros e canibais.
- Eles viviam em guerra, que não eram territoriais. Estavam muito relacionadas com vingança, com vingar a morte de um parente comido num ritual de canibalismo. Eles eram canibais e isso era um grande incômodo para os portugueses. O fim do canibalismo, da nudez e da poligamia eram pontos importantes para que fosse estabelecida a aliança com os portugueses, vista com muito interesse pelos índios para atacar seus inimigos - completa o historiador.
Uma das histórias curiosas é a descoberta, em 2000, em escavações em sítios tupinambás, de uma cota de malha de ferro, espécie de armadura, do século XVI. Achada em Araruama, por equipes do Laboratório de Arqueologia Brasileira, sabe-se que ela foi fabricada na Normandia e era usada por nobres. Fica o mistério: teria o seu dono sido devorado num ritual de canibalismo? O fato é que, com o tempo, em vez de comer os inimigos, os índios passaram a vendê-los ou trocá-los com os portugueses, que faziam deles seus escravos. Com isso, o principal traço cultural dos índios do Rio foi sendo abandonado.
Os índicos também se inseriram na sociedade local por meio da mestiçagem com os portugueses, o que não era mal visto, como lembra Raminelli. O sangue indígena podia ser encontrado mesmo entre a elite. Arariboia é um exemplo: depois de ficar ao lado dos portugueses contra os franceses, ele recebeu em 1571 de Dom Sebastião, Rei de Portugal, um título de nobre, passando a ser um cavalheiro português.
Já o antropólogo José Bessa, da Uerj, diz que, no século XIX, havia 15 aldeias no estado, que foram sendo declaradas extintas pelas autoridades:
- Essa operação era ligada à posse da terra. No século XIX, no Vale do Paraíba, retiravam os índios dos locais de origem e levavam para outro lugar para liberar terras para o café. Depois que estavam em contato com a sociedade regional, não eram mais considerados índios, o que significava a perda do direito de reivindicar a terra como tal.

O Globo, 25/05/2014, Rio, p. 20-21

http://oglobo.globo.com/rio/o-segredo-dos-guaranis-que-ainda-habitam-rio-12596252
PIB:Sul

Related Protected Areas:

  • UC Serra da Bocaina
  • TI Guarani de Araponga
  • TI Guarani do Bracuí
  • TI Parati-Mirim
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.