"Uma Jornada ao Coração do Tapajós"
Na esteira das mobilizações que tomaram conta do Brasil neste ano; os indígenas tem se mostrado essencial no que tange ao ativismo e movimentos sociais. Para os Mundurukus não é diferente.
Os Mundurukus vivem na Bacia do Rio Tapajós no Estado do Pará. O rio Tapajós é um rio do Brasil que nasce no estado de Mato Grosso, banha parte do estado do Pará e deságua no rio Amazonas ainda no estado do Pará. Os Mundurukus habitam as áreas indígenas Cayabi, Munduruku, Munduruku II, Praia do Índio, Praia do Mangue e Sai-Cinza, no sudoeste do estado do Pará.
Na semana passada, 412 Mundurukus proveniente de 62 aldeias se uniram na aldeia Restinga para fortalecimento do Movimento Ipereg Ayu, criado por eles mesmos na sua afirmação contra barragens nos Rios da Amazônia e pelos direitos que constitucionalmente e internacionalmente lhe são garantidos. Como uma das convidadas não pude deixar de comparecer.
Sai de Altamira com uma delegação de oito pessoas às 7 horas da noite do dia 30 de outubro de micro-ônibus pela Tranzamazônica. Foram 25 horas de estrada de chão até Jacareacanga, cidade mais próxima; passando por Itaituba. O micro-ônibus vinha a todo vapor; embalado pelo arroxa no último volume e dançando na pista lamacenta e esburacada pela chuva. No caminho, uma sequência de elefantes brancos: grandes pontes inacabadas do governo Federal; provavelmente semi-construídas com verba pública. Nas chacoalhadas intensas resolvi me entregar ao destino e aceitar o momento como uma criança aceitando a correção de uma mãe; porque ali, a Amazônia me ensinava uma lição de vida e de muita humildade e respeito aos povos que nela habitam. Aquele trajeto rotineiro para alguns já era aceito como normal.
No ônibus; um motorista, não sei se apaixonado ou se com dor de cotovelo cantarolando suas músicas madrugada afora a todo volume; uma ex-mulher de prefeito bem vestida e com bobs na franja esperando o amanhecer; um índio Xipaya cobrindo a cabeça com sua toalha de homem aranha e uma grávida. Fiquei pensando o que pensava aquele bebe dentro daquela barriga.
Chegamos em Jacareacanga já pelas 10 da noite. Parcialmente silenciada com o cair da noite. A cidade é basicamente movida pelos garimpos. No hotel de 50 reais o quarto, tive direito até a um ar condicionado. Só não tinha internet ou sinal de telefone algum. Dormi até as 4 da madrugada; hora suposta em que deveríamos partir para a aldeia da restinga. Já ali eu só pensava neste povo; que povo guerreiro... Isolados no meio do nada agora se obrigam a sair de um lado a outro para enfrentar o governo brasileiro irresponsável e desumano.
De Jacareacanga até a restinga foram uma hora e meia de ônibus (a 800 reais o frete) e cinco horas de barco, navegando o majestoso Tapajós.
Ao chegar à restinga nos emocionamos com a recepção. Um sentimento de profunda gratidão tomou o coração de todos nós. Os Mundurukus nos esperavam pintados, com suas flechas, vestimentas e faixas, cantando suas canções tradicionais. Caminhamos por baixo de um arco feito da palha do coco enquanto eles nos acompanhavam cantando. Chegamos até o local da reunião e um por um eles vieram nos cumprimentar - Xipat!
Nos serviram peixe e farinha e pacientemente nos esperaram comer. Em seguida a reunião iniciou. Pude avistar 412 guerreiros; organizadamente sentados escutando cacique por cacique que se apresentou em seu idioma e abriu a apresentação das suas aldeias e seus membros. As apresentações terminaram tarde da noite; não pude nem ver quando. Imagino que estavam ali acordados até às 3 da manhã.
No dia seguinte, logo cedo, às 6 horas, eles já estavam ali reunidos novamente. Teve dança e mais reunião. Tudo no idioma deles. Dos 21 pontos de pauta apenas um foi coberto. As nove da noite sentamos pra compartilhar as experiências. Com todo meu cansaço fiquei impressionada com a energia desse povo. O dia inteiro reunidos no calor; ouvindo um a um, entre guerreiros; mulheres; crianças; idosos; todos. Simplesmente todos tiveram vez e voz.
Durante a noite; os povos do Xingu fizeram seus relatos. Assim começou se Élio, pecador do Xingu, depois de passarmos o video sobre a sua vida:
"vocês acabam de assistir a história de um pescador derrotado. Mesmo derrotado eu estou aqui para lutar por uma causa. Para lutar ao lado de vocês."
Seu Élio emocionou a todos; bem como os que lhe seguiram. De todos os discursos, não pude deixar de registrar também o de seu Miguel Xipaya, indígena da Volta Grande de 81 anos de idade que nos acompanhava naquela dura viajem. Seu Miguel perdera tudo, e ainda assim fazia o povo "rir para não chorar": "Altamira já não é mais Altamira; deveria ser chamado de Altamorte! A Norte Energia é dona da prefeitura; do hospital; da cadeia. Se o homem quer casar ele vai pra Norte Energia; se ele quer separar ele vai pra Norte Energia. Que cachorrada é essa? Eu vivo preso; eu não posso nem subir nem descer. Falta água, falta tudo. Os peixes já chegam mortos. Tenho dois sítios e não consigo morar lá porque a água esta podre. O sítio esta abandonado; não tem escola não tem nada. Eu tenho minha roça, meu cacoal, mas hoje nós vivemos lá humilhados. Eu vivo num sofrimento que só eu sei por causa dessa barragem. Eu tenho 81 anos e nunca comi uma banana da Norte Energia; eu não preciso dela. Eu posso morrer até debaixo de um banco mas não peço um caixão para a Norte Energia. A volta grande do Xingu é grande mas tudo esta sendo atingido por essa barragem. Agora nós estamos na letra "F" mas não é de feliz não."
O terceiro dia da assembleia foi coroado com 15 batismos e 2 casamentos. Em seguida as reuniões perduraram até uma e meia da madrugada; hora essa em que todos foram festejar os casamentos madrugada afora. Neste dia falou-se muito em direitos.
"Essa terra é onde Deus "deixou nós". Nós nascemos e fomos criados aqui; por isso a Dilma tem que "respeitar nós". Nossos antepassados viram o nosso Deus que fez o nosso rio através de um caroço de Tucumã. Essa Dilma é uma criminosa pra mim; ela não nos respeita. Nós queremos viver; nós também somos criaturas de Deus; ele deixou a gente aqui nessa terra e por isso a gente merece respeito;" registrou Faustino Kaba.
Chegou então o dia de partir, com os corações partidos... Realizamos uma reunião com as mulheres que contavam 120; intuindo o fortalecimento das mesmas. Pude observar neste quarto dia de assembleia a alegria de todos por poderem fazer daquele momento; um momento de união:
"Essa assembleia esta muito boa porque vários capitães; os guerreiros e guerreiras; estudantes; crianças estão presentes. Ela esta fortalecendo mais o povo. Eu saio daqui emocionado porque a gente conseguiu reunir as aldeias," falou o segundo capitão dos guerreiros, Akay Biorébu, e prosseguiu: "A mensagem que queremos que o mundo saiba é que nosso povo está unido e cada vez mais estaremos mais unidos para lutar junto pelos nossos direitos. Todos os caciques e membros dos guerreiros estão pedindo para que as pessoas continuem lutando e compartilhando informações."
Quanto a mim, também saia dali emocionada. A união e força deste povo eram impressionantes; deixando uma clara mensagem ao mundo de que custe o que custar; eles defenderam seus territórios. Na memória ressoava uma frase que não queria se calar: "eu não sou brasileiro; eu sou Munduruku. Brasil é uma invenção dos Europeus; mas a gente já estava aqui muito antes e, portanto merecemos respeito".
Maíra Irigaray é advogada Internacional de Direitos Humanos e Meio Ambiente. Mestre em Direito Comparado pela Universidade da Florida. Atualmente Coordenadora de Campanha de reforma das Instituições Financeiras Internacionais para a Amazon Watch e Coordenadora da Frente "Bancos" para o Movimento Xingu Vivo para Sempre.
http://www.ecoreserva.com.br/eco-news/colunistas/1981-eu-nao-sou-brasileiro-eu-sou-munduruku
PIB:Tapajós/Madeira
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