Roberto Liebgott: "questão indígena mexe com a estrutura fundiária do Brasil"

Sul 21 - http://www.sul21.com.br - 12/08/2013
No início do mês de junho, representantes dos povos caingangue, guarani e charrua e de entidades indigenistas se reuniram com o governador Tarso Genro (PT) no Palácio Piratini, em Porto Alegre. A motivação do encontro era a busca por repostas relativas à continuidade da demarcação de terras no Rio Grande do Sul e a situação de pobreza em que se encontravam os poucos territórios já assegurados. A reunião havia definido para agosto a apresentação dos encaminhamentos iniciais. Entre os presentes, estava o filósofo Roberto Liebgott, militante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) do Brasil.

Roberto conversou com o Sul21 sobre os problemas apresentados ao governo estadual, os recentes enfrentamentos que deixaram indígenas mortos em diversos pontos do país e as questões políticas que perpassam as principais demandas indigenistas. Para Roberto Liebgott, diversos povos indígenas passam, diariamente, por situações de violência e descaso do poder público. "Todos os problemas maiores são o resultado da negligência estatal, no sentido de não haver uma política indigenista que respeite as diferenças étnicas", definiu.

Sul21 - No início de junho, houve uma reunião no Palácio Piratini, em que lideranças indígenas pediram definições para o governador Tarso Genro (PT) sobre a demarcação de terras e o conflito com agricultores no Rio Grande do Sul. O governo havia dado um prazo inicial de dois meses, que se encerra justamente em agosto. Há mudanças visíveis ao chegarmos a este primeiro prazo?

Roberto Liegbott - Foi estabelecido o prazo de 60 dias no sentido de que o governo do estado criaria condições para uma maior aproximação com os atingidos pelas demarcações de terra, e ele (Tarso Genro) faria a intermediação para negociar o pagamento das indenizações, tanto das benfeitorias quanto das terras. Nesse sentido, não houve nenhum encaminhamento ao longo dos 60 dias.

No dia 1o de agosto, houve uma nova reunião com a presença do governador, da presidente da Funai e do ministro da Justiça na sede do Incra, em Porto Alegre, na qual eles solicitaram um período de mais 30 dias para elaborar uma espécie de cronograma, que buscaria atender as áreas emergenciais. Ou seja, eles pretendem resolver a situação de algumas áreas de conflito, fazendo também essa negociação com agricultores e as comunidades indígenas.

Na nossa avaliação, o pedido de mais um mês não passa de protelação. Porque, enquanto isso, percebemos iniciativas junto a comunidades indígenas para convencê-las a se retirar das áreas reivindicadas, em troca de áreas oferecidas pelo governo. Essas trocas são, a nosso entender, uma afronta ao direito constitucional dos índios, porque pretende substituir o direito por uma espécie de "favor" que o governo do estado estaria fazendo. A ideia é afastar os indígenas das áreas de conflito e deixar tudo como está.

Sul21 - Quais seriam estas áreas emergenciais?

Roberto Liegbott - Dos guaranis, a área de Mato Preto, por exemplo. Mas não é no sentido de atender à reivindicação de 4000 hectares, eles pretendem assentar os índios numa área de 220 hectares, já demarcada pelo estado em 1911. Eles não estão levando em conta o direito ao território inteiro. Também a área de Irapuá, que passa por conflito há tempos. O problema ali não é a terra em si, porque ela é pequena, mas a concepção que os fazendeiros têm de que os índios não são nada - e não sendo nada, não teriam nem direito a estes poucos hectares.

Na verdade, são formas de visão diferentes, algumas extremamente preconceituosas, que querem manter os índios em quintais ou na beira de estradas. Há, ainda, o Cantagalo, uma área que fica entre Viamão e Porto Alegre, demarcada desde 2004 e homologada em 2006. Ali ainda vivem agricultores, o governo ao longo deste tempo não deu condições para os índios usufruírem da terra e tampouco negociou para que os agricultores pudessem sair.

Quanto aos caingangues, há conflitos em Passo da Forquilha, com confronto com agricultores na região, e problemas também em Mato Castelhano, onde se faz necessária uma intermediação do Estado. O que nos preocupa é que tanto o governo estadual como o federal discursam no sentido de defender os direitos dos indígenas, mas quando se reúnem com agricultores e fazendeiros, fazem um discurso inverso, de que buscarão alternativas para além da demarcação das terras. A gente percebe uma negociação que não dá garantias para o lado mais frágil deste processo.

"É preciso definir o que é terra legalmente adquirida, quais são títulos entregues pela União, quais foram griladas, o que foi concedido pela Funai"

Sul 21 - Na reunião realizada em junho, representantes indígenas falaram que o cenário no Rio Grande do Sul é diferente por envolver também os interesses de pequenos agricultores. A situação aqui é distinta de, por exemplo, casos como o de Mato Grosso do Sul e Paraná?

Roberto Liegbott - Aqui de fato há esta peculiaridade, principalmente no norte do estado. Houve um processo de colonização, já que o estado na época entregou terras a colonizadores. Neste processo, os índios foram retirados das suas terras e foram parar em reservas. Estas terras foram loteadas e vendidas, e ali se dá a disputa atual. No nosso entender, cabe que o governo encontre as soluções adequadas, no sentido de ressarcir as famílias que adquiriram estes títulos de propriedade.

Em outras regiões, especialmente no Mato Grosso do Sul, o enfrentamento se dá com grandes latifundiários, que têm milhares de hectares. São terras muitas vezes griladas, ou que receberam títulos diretamente da União. É uma situação diferente porque é preciso lidar com o grande proprietário. O governo federal, embora tenha o discurso de que são realidades distintas, na política tem buscado garantir não o pagamento das benfeitorias dos pequenos agricultores, mas sim a indenização do latifúndio.

No nosso entender, assim a negociação vira um balcão de negócios. É preciso definir o que é terra legalmente adquirida, quais são títulos entregues pela União, quais foram griladas, o que foi concedido pela Funai, enfim. É preciso ter um levantamento sério desta situação fundiária. Para nós, este levantamento separaria quem está ilegal dos que adquiriram os títulos de forma legal. Assim, quem grilou terra precisará ressarcir a União, para que os territórios sejam então demarcados. O governo parece usar o pequeno agricultor como bode expiatório para resolver os problemas do agronegócio.

Sul 21 - Lideranças indígenas do Rio Grande do Sul apoiam o projeto político que está em andamento no estado. Esta tentativa de conciliar interesses de grupos distintos está, no entanto, desgastando essas relações?

Roberto Liegbott - O desgaste, a meu ver, se dá no âmbito político. Muitos parlamentares, mesmo os aliados a povos indígenas, dizem que "índio não dá, mas tira voto". Na região norte do estado, qualquer político que queira se eleger ou fazer uma carreira, não irá defender os povos indígenas - porque eles são minoria, não garantem uma eleição. Mas isso é o que menos conta neste momento. O que se está estabelecendo aqui é uma espécie de racismo institucional, que parte das pessoas que comandam o estado e não acreditam na capacidade dos índios para gerenciar as suas próprias terras.

Este tratamento preconceituoso é, neste contexto todo, o mais grave. O direito constitucional dos índios não é tratado com um direito legitimo, e por diversas vezes ele não é cumprido - um direito originário sobre estas terras que ocupam ou ocuparam ao longo da história. A discriminação é o principal problema, e parte de autoridades de vários poderes. O próprio Judiciário, quando vai decidir sobre o assunto, parte da premissa de que outros produziriam mais e melhor nas terras do que os índios. Um ponto de vista mercantil e que ignora a cultura do outro.

Sul 21 - Dados do próprio CIMI apontam 500 mortes de indígenas no Brasil, por alguma forma de violência, nos últimos dez anos. A que se devem estas mortes?

Roberto Liegbott - São vários os fatores. O primeiro é a disputa pela terra, o conflito fundiário - entre lideranças, comunidades e povos, com a polícia, em reintegrações de posse, com fazendeiros que não deixam as terras. E há também o problema de confinamento de comunidades. Temos a luta pelo direito à terra, a luta contra quem se opõe ao direito e um problema interno, em função de que ao longo deste processo de confinamento, se juntou grupos étnicos diferentes, que historicamente eram inimigos, e que estando num mesmo espaço acabam protagonizando episódios de tensão.

Todos os problemas maiores são o resultado da negligência estatal, no sentido de não haver uma política indigenista que respeite as diferenças étnicas. Cada povo tem a sua própria forma de ser, não é possível juntar, por exemplo, caingangues e guaranis num mesmo território. Não há condições de compartilharem uma mesma área diminuta, como ocorre hoje. Em Dourados (MS), há um grande problema interno, que envolve violência constante e até mesmo assassinatos.

Sul 21 - Aqui no Rio Grande do Sul, também há relatos de que algumas aldeias indígenas passam por situações de extrema pobreza. A falta de condições básicas de vida também é uma forma de violência?

Roberto Liegbott - A situação a que estão submetidos é a grande violência. A maioria das comunidades guarani vive na beira de estradas ou em áreas mínimas, com a Estiva, em Viamão, que tem sete hectares e abriga cerca de sessenta famílias. É uma situação de tensão cotidiana, porque não há perspectivas para os jovens pensarem o futuro, para os velhos manterem vivas as tradições, porque as relações sociais são prejudicadas. E há comunidades há décadas na beira de estradas, dependendo de um assistencialismo frágil do Estado - de cestas básicas, visitas de enfermeiros.

Mas não há uma política real de demarcação, que assegure uma vida adequada a estas famílias. A maior violência é estatal, são os governos que permitem que famílias passem tanto tempo na beira de rodovias. Agora, com as duplicações no território gaúcho, a situação fica ainda mais complicada.

Sul21 - Apesar das complicações vigentes, ainda há chances de retrocesso através de emendas no Congresso, como a PEC 215, que repassaria ao Legislativo o poder de demarcar as terras indígenas. Como você vê estas possíveis mudanças e a mobilização para que não sejam aprovadas?

Roberto Liegbott - Desde 2012, foram intensificadas as ações do segmento ruralista, então esta PEC 215 é só uma das medidas. Há mais de duzentos projetos de lei sobre a questão indígena, a maioria deles com a perspectiva de fragilizar o que a Constituição estabelece. Os direitos indígenas hoje são um entrave para o interesse capitalista, o "penduricalho" que o (ex-presidente) Lula dizia, um problema que precisaria ser removido.

O presidente Lula já havia dado a dica: "vamos tirar este problema do caminho do governo". Então as medidas parlamentares passaram a chegar aos montes, todas as semanas. O lado bom é que hoje há uma parcela bastante atenta ao que está acontecendo, pessoas ligadas aos direitos humanos, a entidades indigenistas. Os olhares de fora, e mesmo em âmbito internacional, estão freando as iniciativas do Congresso. A PEC 215 é o instrumento que os parlamentares abraçaram porque retira do Executivo a obrigação de demarcar os territórios, e repassa ao Congresso - assim, praticamente nenhuma demarcação seria permitida.

Sul21 - Nos últimos tempos, quem sabe por conta do episódio de Belo Monte e da morte de indígenas do povo terena, as questões indígenas foram discutidas nacionalmente e com frequência, na imprensa e em outros segmentos. O quanto estes temas podem pautar as eleições do ano que vem?

Roberto Liegbott - A questão indígena vai pautar as eleições, mas não em função do voto dos índios, mas por causa dos interesses econômicos e da quantidade de terras indígenas no Brasil. O setor do latifúndio e da mineração são os que bancam as campanhas políticas, afinal. Então certamente os compromissos que os candidatos vão assumir com esses setores vão mexer nesta estrutura, se eleitos forem - porque a conta vai ser cobrada depois, com juros e correção monetária. Estarão a serviço deles.

A política é muito influenciada pela questão indígena, e será mais influenciada ainda pela questão quilombola, quando repercutir a situação fundiária deles. No país, são 1.036 terras indígenas e mais de 5.000 terras quilombolas. Isso tudo vai mexer na estrutura fundiária do país, nos interesses econômicos, e consequentemente também na política. Por isso precisamos mudar a nossa política, para que não haja mais este vínculo dos partidos com estes segmentos da economia, que determinam as pautas e cobram a conta logo depois.



http://www.sul21.com.br/jornal/2013/08/roberto-liebgott-questao-indigena-mexe-com-a-estrutura-fundiaria-do-brasil/
PIB:Sul

Related Protected Areas: